Categorias
Cultura

Dia Nacional do Livro: quando a lei garante o acesso, mas a realidade nega

No Dia Nacional do Livro, celebrado em 29/10, o país volta a se deparar com uma contradição antiga. Há mais de duas décadas, o Brasil instituiu a Lei nº 10.753/2003, conhecida como Lei do Livro, com o objetivo de assegurar a todos os cidadãos o acesso à leitura, estimular a produção editorial e reconhecer o livro como bem essencial. No entanto, passados 22 anos desde sua criação, boa parte das metas traçadas no papel ainda não se transformou em realidade e o direito de ler segue como algo distante para milhões de brasileiros. A falta de acesso à leitura para deficientes visuais, a ausência de bibliotecas em pleno funcionamento nas escolas e a escassa quantidade de programas de incentivo à leitura são apenas alguns dos entraves à plena concretização. 

A norma prevê uma série de ações para ampliar o acesso aos livros: criação de bibliotecas públicas e escolares, incentivo à produção e circulação editorial, além da promoção de programas de leitura em todo o território nacional. No entanto, entre o texto legal e sua aplicação, o que se observa é uma lacuna profunda, marcada por descontinuidades de programas, cortes de orçamento e poucas iniciativas que se adequem à realidade social  do país. 

Um exemplo emblemático é o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), criado em 1997 e que, por quase duas décadas, enviou obras literárias e livros paradidáticos a escolas públicas de todo o país. Contudo, o último ciclo de compras e distribuição do PNBE ocorreu em 2014 e o programa foi descontinuado oficialmente em 2017, deixando um hiato importante nas políticas de fomento à leitura. Desde então, o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) assumiu parcialmente esse papel, mas com foco principal em material didático e não em literatura. Ainda assim, o PNLD segue sendo uma das iniciativas mais robustas de acesso ao livro no mundo, mediante a distribuição de mais de 100 milhões de exemplares por ano e beneficiando cerca de 30 milhões de alunos por ano com obras distribuídas pela rede pública.

Nos anos seguintes, uma nova lei tentou preencher parte dessas lacunas. Em 2018, foi criada a Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE), instituída pela Lei nº 13.696, com o objetivo de transformar o direito de ler em uma prática social efetiva. Enquanto a Lei do Livro cuida do objeto (o livro em si, sua circulação e produção), a PNLE foca no leitor, na formação de mediadores e na democratização do acesso à leitura. Em teoria, as duas legislações se complementam: uma garante que o livro exista e circule e a outra busca garantir que ele chegue às mãos das pessoas e que elas sejam estimuladas a criar o hábito de ler. Na prática, contudo, ambas ainda enfrentam dificuldades de articulação, orçamento e continuidade entre governos.

Para a professora Vanessa Teixeira, doutora em Letras pela UFRJ, professora adjunta e supervisora do setor de Literaturas Africanas da Faculdade de Letras também na UFRJ, a leitura tem um poder transformador que ultrapassa o conteúdo didático e amplia o valor do livro e da leitura, lembrando que ela precisa trazer histórias que carregam maior diversidade, não apenas para cumprir a lei, mas porque essa é a história do Brasil. “Quando o estudante tem contato com o livro, ele amplia o olhar sobre o mundo. Mas é preciso que esse acesso também reflita as nossas histórias, as narrativas de autores negros, indígenas e periféricos, que muitas vezes não estão nos livros didáticos. Sem essa diversidade, a leitura não cumpre seu papel de formar cidadãos críticos”, afirma.

Vanessa enfatiza, ainda, a importância de políticas de longo prazo. “Essas leis precisam resistir às mudanças de governo. Quando há rupturas, todo o trabalho de formação leitora retrocede. O acesso ao livro é importante, mas o que se lê também precisa representar quem somos.”

O subsecretário de Ensino da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, Adriano Giglio, reconhece que o desafio é grande, mas reforça que o município tem buscado caminhos próprios para enfrentar o problema. Segundo ele, há hoje um “esforço contínuo para revitalizar bibliotecas escolares e comunitárias”, dentro de um calendário anual de atividades literárias e parcerias institucionais. 

“Temos procurado fortalecer o vínculo dos alunos com o livro desde a educação infantil. Não basta colocar o livro na prateleira, é preciso criar uma cultura de leitura dentro das escolas”, explica.

Giglio salienta que o município mantém diálogo com programas federais, como o PNLD, mas também busca autonomia em políticas locais de incentivo. “O governo municipal tem suas próprias ações, mas trabalhamos em sinergia com as iniciativas nacionais. Acreditamos que essa integração é o caminho para garantir o acesso permanente à leitura, independentemente das mudanças de gestão”, afirma.

Outro ponto enfatizado por ele é a formação de mediadores de leitura, um eixo que tem recebido atenção dentro da Secretaria. “Nós sabemos que o livro sozinho não forma o leitor. É o professor, o bibliotecário, o coordenador pedagógico que fazem a ponte entre o texto e a experiência do aluno. Por isso, temos investido na formação continuada desses profissionais, para que o livro seja, de fato, um instrumento de transformação”, diz.

Questionado sobre os próximos passos, o subsecretário antecipa que novas ações estão previstas para os próximos anos, especialmente com foco em escolas de tempo integral. “Acho que primeiro vale destacar que fomos pioneiros na proibição do uso de celulares em todas as escolas municipais de ensino, medida que já está em vigência pelo segundo ano e apresenta bons resultados, mas queremos que o acesso ao livro e à leitura estejam presentes em todos os turnos e espaços da escola, seja de forma física ou digital. Então, nosso desafio é também fazer a inclusão dessas tecnologias. Temos mais de 600 mil alunos e, apesar dos esforços, sabemos que ainda há muito a se fazer. Então, para os próximos anos, queremos equipar as escolas com mais recursos tecnológicos para que a leitura esteja em movimento, não restrita a um espaço físico ou horário específico”, completa.

Há, no entanto, exemplos que mostram a eficácia das políticas de incentivo quando bem aplicadas. Leis de fomento, como a Lei Rouanet, e programas de compras governamentais possibilitaram que editoras independentes e autores de diferentes regiões tivessem seus livros distribuídos nacionalmente. Além disso, projetos literários apoiados por essas leis ajudaram a consolidar feiras, festivais e clubes de leitura que resistem fora do eixo Rio-São Paulo.

Em comparação com alguns países latino-americanos, como Argentina e Colômbia, o Brasil ainda enfrenta desafios para consolidar uma política de Estado para o livro e a leitura com efetiva continuidade e articulação intergovernamental. Na Colômbia, por exemplo, segundo a Biblioteca Nacional da Colômbia e o Ministério da Educação do  país, o Plano Nacional de Leitura, Escrita e Oralidade (“Ler é minha história”) e a Política Nacional de Leitura, Escrita, Oralidade e Bibliotecas Escolares têm metas claramente definidas para 2022–2030. Na Argentina, segundo o governo do país, o Plano Nacional de Leituras e outros programas federais de leitura operam em âmbito nacional. No Brasil, apesar de leis e políticas vigentes, há críticas sobre a continuidade entre gestões e sobre a articulação interministerial, o que sugere que a política de Estado ainda está em construção.

Isso se reflete na relação que muitos jovens têm com o livro. É o que relata o aluno da licenciatura em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ, do 5º período, Otaviano Favatto. Morador da Zona Oeste do Rio, a trajetória do estudante com a leitura é marcada por desafios e redescobertas. Criado em um ambiente periférico, ele conta que precisou sozinho construir uma relação com a literatura.

“Por muito tempo, achei que ler precisava ser algo difícil, uma prova de intelectualidade ou coisa parecida. Hoje, enquanto estudante universitário, passei a ressignificar o lugar do livro na minha vida e passei a vê-lo como um instrumento de emancipação. Isso me fez descobrir o prazer da leitura”, conta. 

No Dia Nacional do Livro, mais do que celebrar, é preciso cobrar que a legislação saia do papel. O acesso à leitura não deve ser tratado como privilégio ou projeto temporário, mas como direito cultural e base para a formação crítica da sociedade.

O livro é mais do que um objeto: é um lugar de encontro. Cada página aberta é uma porta que se escancara para outras vidas, outras vozes, outras histórias, inclusive, as que ainda não foram contadas. E enquanto houver uma criança sem biblioteca, um estudante sem mediador ou um autor sem leitores, o país continuará escrevendo, nas margens da lei, o seu maior silêncio.