Tem look montado com peça do brechó e atitude de passarela no asfalto. Gíria que virou bordão, fundo de quintal que agora é estúdio. Os influenciadores da periferia não seguem padrão, eles criam o próprio, e ressignificam sua realidade como ativo cultural. Sua rua, sua casa, sua vida como ela é vira inspiração estética, poética e comercial. Em vez de reproduzir tendências, criam novas linguagens que impactam moda, música, comportamento e consumo. O que chamam de “inovação”, para eles, já virou estilo de vida faz tempo.
A maioria começa com o que tem: um celular simples, internet instável e criatividade afiada. Com pouco apoio e muita resiliência, criadores periféricos desenvolvem rotinas de produção, estudam algoritmos e entendem como se posicionar. O que parece casual é, muitas vezes, fruto de um planejamento minucioso feito no intervalo entre o trabalho formal e os cuidados com a família. Essa “dupla jornada” exige um tipo de inteligência prática que ainda é subvalorizada nas esferas tradicionais de influência e publicidade.
Representatividade que move
Allayne Pantaleão, 25 anos, é uma dessas vozes que ecoam das periferias para o mundo. Nascida em Bangu e criada entre as favelas da Serrinha e do Muquiço, ambas na Zona Norte do Rio de Janeiro, ela hoje cursa Medicina na UFRJ e compartilha sua rotina nas redes sociais. Seu conteúdo aborda temas como beleza, cabelo crespo 4C, skincare, vlogs da faculdade e reflexões sobre o mundo. Mas sua jornada nas redes começou como uma forma de resistência.
“Eu comecei a produzir conteúdos para as redes sociais incentivada por minha psicóloga depois de ter muitos conflitos com a questão do racismo na faculdade de Medicina. Eu sentia que precisava falar sobre quem eu era para além das definições racistas que a faculdade me impunha”, conta Allayne.
Antes de ingressar na Medicina, Allayne sonhava em cursar Jornalismo. Sua paixão pela comunicação vem de longa data, alimentada pelas experiências na igreja evangélica, onde cantava e falava em público desde cedo. Essa bagagem se reflete na forma como ela se comunica nas redes, utilizando uma linguagem afetiva e inspirada na escrevivência – escrita que vem da vivência, da experiência pessoal ou coletiva, baseada nas memórias e na luta especialmente das mulheres negras, cujo termo foi cunhado pela escritora Conceição Evaristo.

“Eu uso muito da prática da escrevivência na forma que me comunico em vídeos e textos e, também, dos aprendizados que tive das eletivas de Comunicação que cursei na UFRJ sobre o poder das mídias”, explica.
Seu sonho é unir a Medicina à Comunicação para empreender na área da beleza com propósito e autoamor para a comunidade negra. Segundo a influenciadora, a UFRJ teve um papel fundamental na sua trajetória. Pensando no futuro, Allayne diz que pretende fazer residência em Dermatologia e continuar usando as redes como forma de articular seu futuro trabalho e empreendimento no nicho da beleza.
“O fato de eu cursar Medicina na UFRJ fez meu trabalho ter um alcance muito maior e mais rápido do que eu esperava. Muitas pessoas me seguem porque também querem ser aprovadas em Medicina e sonham com essa vaga, sobretudo pessoas de baixa renda e negras. Acho bonito porque elas veem em mim uma inspiração também”, revela.
“Não é só sobre postar vídeo, ganhar seguidor ou fazer trend. É sobre fazer com que alguém, do outro lado da tela, se veja ali. É sobre pertencimento. Quando um influenciador da periferia e das favelas aparecem com seu jeito de falar, sua cor, seu corre, tem uma galera inteira pensando: ‘caramba, parece comigo’. E isso muda tudo. Outros jovens podem sonhar ir mais longe. A internet vira rota de acesso, de possibilidades, um espaço onde ser da periferia não é obstáculo, mas potência”.
É o que relata a estudante de Letras (Português/Inglês) na UFRJ, criadora de conteúdo e cria de Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro, Camille Andrade, de 24 anos. Todos os dias, a estudante leva mais de duas horas para chegar ao campus Fundão, enfrentando ônibus lotados, trens e muito calor. Com mais de cinco anos de estrada produzindo conteúdo, ela viralizou ao mostrar, com sinceridade, bom humor e zero glamour, a vida real de uma universitária da periferia.
A trajetória começou durante a pandemia, como tantas outras.“Comecei no TikTok, aquela época que geral buscou a plataforma. Estava com um tempo em casa, precisando me distrair. Comecei com dublagens de forma muito caseira, passando meu tempo mesmo. Tinha acabado o ensino médio e tinha acabado de passar pra UFRJ”, revela.
A primeira vez que percebeu que sua voz estava ganhando força foi quando pessoas começaram a reconhecê-la nas festas da Universidade.
“Alguém que eu ainda não tinha visto me disse que já tinha visto meus vídeos. Isso foi no início, mas agora geralmente tô no ônibus e no metrô e sempre tem uma pessoa do ensino médio que fala que sonha em passar na federal, na UFRJ, e que me acompanha”, comenta, contente.

O momento em que tudo virou foi quando um vídeo seu viralizou e acabou sendo pauta de uma reportagem ao vivo na TV Globo. “Era sobre minha rotina universitária e o tempo que eu levava para chegar no Fundão. Foi ali que entendi de fato a proporção social que já alcancei.” Para Camille, o público da periferia está em busca de algo que raramente encontra nos grandes veículos: verdade, pertencimento e identificação. E diz que a Universidade também ocupa um papel central na sua formação como criadora.
“Sem sombra de dúvidas, antes de trabalhar com a internet, eu só escolhi a UFRJ porque meu currículo profissional ia ser muito mais valorizado. Sempre fui amante da licenciatura, da língua portuguesa – nem se fala –, da língua inglesa também, uma influência cultural pra mim. Como criadora de conteúdo, estudar na federal, ainda mais na UFRJ, chama atenção. Tomara que fazer graduação e estudar vire algo muito importante algum dia no Brasil”, finaliza.
Camille faz parte de uma geração que cresceu com o celular na mão, mas não com todas as oportunidades no bolso. Essa juventude de periferia encontrou na internet uma vitrine para contar suas verdades – sem filtro, sem maquiagem, sem roteiro. São essas vozes que estão, aos poucos, reconfigurando o que significa “influência” no Brasil.
Muito além de histórias individuais
Para entender melhor esse fenômeno, conversamos com Ivana Bentes, professora titular da Escola de Comunicação e Pró-Reitora de Extensão da UFRJ, que estuda o impacto da cultura digital e da produção periférica na sociedade contemporânea.
Segundo Ivana, o desejo de se tornar influenciador é cada vez mais comum entre os jovens, independentemente da classe social, por prometer visibilidade, autonomia e possibilidades de renda em um país onde o ensino formal nem sempre garante mobilidade.
“Há um deslocamento de interesse do modelo tradicional de ascensão baseado na educação formal para formas de reconhecimento ligadas ao empreendedorismo criativo e à cultura digital”, explica.
No entanto, ela afirma que muitos jovens conciliam o sonho de influenciar com a busca por formação superior, em áreas como comunicação, moda e audiovisual. A pesquisadora também aponta os desafios enfrentados por influenciadores periféricos que vão desde o acesso precário à internet até os preconceitos sociais e territoriais. Ainda assim, essas barreiras abrem espaço para uma produção original, carregada de autenticidade. “Há uma capacidade de criar novos repertórios, romper padrões de ‘bom gosto’, experimentar estéticas e usar uma linguagem informal que aproxima.”
Ivana destaca nomes como @raphaelviicente, da Maré, @mototaxiduamor, do Vidigal, e @favela_organica, da Babilônia, como exemplos de influenciadores que criaram formas singulares de narrar o cotidiano a partir da periferia.
“Eles constroem identidades públicas, ampliam seu capital social e econômico e fazem uso crítico das plataformas”, afirma.
Para além do estigma de que só falam sobre pobreza ou superação, os influenciadores da periferia transitam por temas diversos: de beleza à economia, de cultura pop à alimentação vegana.
“A identidade periférica é uma característica importante, mas não uma limitação. O que eles mostram é que podem falar de tudo, a partir de um lugar social que amplia os sentidos”, finaliza.
Essa nova geração de criadores não só transforma sua própria realidade, como também reconfigura o imaginário coletivo sobre o que é poder, pertencimento e influência no Brasil. O trabalho realizado por eles mostra que é possível criar a partir da realidade de onde se vive e transformar isso em uma forma legítima de fazer história.
Sob supervisão da jornalista Vanessa Almeida.