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As comissões de heteroidentificação e a democratização do ensino superior

Formadas por parte da comunidade acadêmica, elas garantem o acesso a grupos que têm direito a cotas raciais na Universidade

As comissões de heteroidentificação são uma parte fundamental no processo de democratização da educação do ensino superior público para grupos que foram historicamente discriminados e afastados desse lugar. A Instrução Normativa (IN) nº 23, elaborada pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), em 25 de julho de 2023, define a heteroidentificação como “procedimento de identificação por terceiros da autodeclaração realizada pela pessoa que optou por concorrer às vagas reservadas”. Na UFRJ, as comissões são grupos formados pela comunidade acadêmica: servidores técnico-administrativos, docentes e alunos. A principal missão das comissões é garantir que as vagas destinadas às cotas raciais para pretos e pardos cheguem a quem efetivamente tem direito a elas. 

Breve histórico

O ensino superior no Brasil, principalmente o público, foi durante muitas décadas um espaço ocupado pelos grupos considerados como a elite brasileira. Com a escassez de vagas que contemplassem todos, só quem estudava nas melhores escolas – na maioria absoluta das vezes, particulares – tinha possibilidade der acesso às universidades públicas. Um verdadeiro contrassenso. A realidade começou a mudar com a aprovação da Lei 12.711/12. Na época de sua promulgação, ela estabelecia que um percentual das vagas oferecidas fosse destinado a alunos pretos, pardos e indígenas. Leia mais sobre a Lei de Cotas na Série Dez anos da Lei de Cotas, produzida pelo Conexão UFRJ. Atualmente a Lei abrange, em suas cotas, pretos, pardos, indígenas e quilombolas, além de pessoas portadoras de deficiência. 

O ingresso de candidatos cotistas na UFRJ ocorreu pela primeira vez em 2014. Para usufruir o direito de ingressar por cotas, bastava uma autodeclaração. Ou seja, para fazer jus às vagas destinadas a pretos e pardos, o candidato só precisava entregar uma declaração em que se dizia pertencente a esse grupo racial. Dessa forma, diversas pessoas que não eram possuidoras do direito fraudaram suas declarações. A Universidade era o “paraíso das fraudes”, como afirma Denise Goes, superintendente da Sgaada (Superintendência-Geral de Ações Afirmativas), órgão responsável pela formação e organização das comissões de heteroidentificação. 

Foto: Fábio Caffé (SGCOM/UFRJ)

Em 2019, a Universidade recebeu uma denúncia de que estudantes cotistas teriam fraudado a autodeclaração, ou seja, teriam se declarado pretos ou pardos sem o serem de fato. Como forma de apurar essas denúncias e combater as possíveis fraudes, criou-se uma comissão de fraudes, destinada exclusivamente a aferir o pertencimento racial dos denunciados.

A partir de 2020, a heteroidentificação passou a ser uma etapa eliminatória da seleção para entrada na graduação. Assim, todos os candidatos que se inscrevem pelas cotas na modalidade pretos e pardos precisam passar pela comissão. Para Denise Góes, essa fase é muito importante: “É uma fase importantíssima [do processo seletivo] porque, se você não não está direcionado à cota à qual tem direito, você vai ser eliminado. Por isso é muito bom pensar em que cota você vai se posicionar dentre as modalidades e seus cruzamentos”. 

O trabalho desenvolvido pelas comissões de heteroidentificação

Na UFRJ as comissões são formadas por servidores e alunos da Universidade. Os critérios avaliados são exclusivamente fenotípicos. Dessa forma, o candidato à vaga destinada a cotas para pretos e pardos precisa apresentar um conjunto de marcadores fenotípicos que o caracterize como pertencente a esse grupo racial. Denise Góes destaca que “as pessoas têm que se desprender da genética”. 

A mestiçagem, processo de mistura racial não apenas biológico mas também cultural, é um traço marcante da sociedade brasileira. Por aqui, essa mistura, que muitas vezes foi forçada, nos acompanha desde a época da colonização e escravização impostas por Portugal. De lá para cá, o racismo de marca é o que prevalece na forma de hierarquizar pessoas e determinar quem tem direitos e possibilidades. No Brasil, o racismo se baseia em características como cor da pele, textura do cabelo e traços do rosto para se manifestar. Em alguns países, o tipo de racismo que prevalece é o de origem, baseado na composição genética. 

Sendo uma sociedade fundada no racismo, o Brasil ainda necessita de políticas públicas voltadas para grupos que foram historicamente excluídos, e infelizmente continuam sendo, já que o racismo segue se reinventando no nosso país. Denise destaca que são as características fenotípicas que determinam como a sociedade vê as pessoas. “A heteroidentificação é para isso, é para fazer essa leitura social de como esse indivíduo está sendo perseguido na sociedade brasileira. E a gente só faz isto: a garantia da política pública. Nós estamos aqui para garantir políticas públicas para a população negra”. 

O trabalho das comissões de heteroidentificação na UFRJ é baseado nos critérios estabelecidos pela Instrução Normativa nº 23, elaborada pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), em 25 de julho de 2023. O dispositivo legal disciplina a aplicação da reserva de vagas para pessoas negras nos concursos públicos para provimento de cargos públicos nos termos da Lei nº 12.990/2014 e nas contratações por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, de que trata a Lei nº 8.745/1993. Segundo a IN, “a comissão de heteroidentificação utilizará exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pela pessoa no certame; serão consideradas as características fenotípicas da pessoa ao tempo da realização do procedimento de heteroidentificação; e não será admitida, em nenhuma hipótese, a prova baseada em ancestralidade”.

Os membros que compõem a comissão de heteroidentificação são designados para tal função por meio de portarias, assinadas pelo reitor da Universidade. Antes disso, todos passam por uma formação que consiste em aulas sobre os mecanismos do racismo no Brasil. “A formação precisa ajudar a pessoa que vai heteroidentificar a compreender o motivo de a ação afirmativa existir e também o que ela precisa analisar. A gente faz avaliações posteriores para entender quem são as pessoas aptas e o que entenderam sobre a questão”, afirma Denise. A formação é uma etapa também exigida pela IN  nº 23 do MGI.

Foto: Fábio Caffe (SGCOM/UFRJ)

Todas as aferições de heteroidentificação são realizadas de forma presencial e gravadas em vídeo, em que o candidato tem a oportunidade de apresentar uma defesa por escrito, declarando os motivos pelos quais acredita que é apto a concorrer às vagas reservadas para pretos e pardos.

Segundo dados da Pró-Reitoria de Graduação (PR-1), desde a instituição da heteroidentificação no acesso à graduação, 15.787 candidatos já foram heteroidentificados, dos quais 14.120 foram considerados aptos.

As mudanças na Universidade


A UFRJ tem mudado seu perfil de alunos depois da aprovação da Lei das Cotas. Hoje, o corpo estudantil é mais diverso e um pouco condizente com a realidade racial do Brasil. Ricardo Anaya, superintendente de Acesso e Registro da Pró-Reitoria de Graduação (PR-1), destaca que essa mudança aconteceu efetivamente após a instituição das comissões de heteroidentificação no acesso à graduação. Ele afirma que muitos alunos se autodeclararam pardos sem ter o efetivo direito de ocupar uma vaga destinada a esse grupo racial. “Basta você andar pelos corredores da instituição que você percebe uma mudança na composição racial do nosso corpo de discentes”. Atualmente, dos 55.894 estudantes de graduação da UFRJ com matrícula ativa ou trancada, 24.097 ingressaram pela política de ação afirmativa instituída pela Lei nº 12.711/2012. Dentre os estudantes cotistas regularmente matriculados na UFRJ, 13.939 ingressaram por cota racial.

Para Ricardo, as aferições de heteroidentificação são fundamentais para que a lei possa ter concretude. “Se a autodeclaração continuasse tendo um um caráter absoluto, a gente continuaria esvaziando o espírito da lei, que é o de incluir segmentos da sociedade historicamente discriminados. Então, é uma medida necessária e extremamente louvável para que a gente possa fazer com que essas vagas cheguem aos seus reais destinatários”, afirma o superintendente. 

Foto: Fábio Caffé (SGCOM/UFRJ)

As comissões de heteroidentificação desempenham suas atividades não apenas no acesso à graduação, mas também na pós-graduação e em concursos públicos.