Mário Pedrosa, crítico de arte, tinha uma visão incomum sobre o que deveria ser expressão artística moderna, pensada por muitos como aliada do progresso industrial e racionalista. O crítico valorizava o caráter sensível, psíquico e múltiplo da arte, sendo um dos influenciadores do movimento concretista. Apesar de ter falecido em 1981, hoje sua perspectiva é importante para enriquecer o debate sobre modernidade nos meios artísticos e fortalecer o desenvolvimento da sociologia da arte em cursos de graduação e pós-graduação. Por isso, a Editora UFRJ lançou neste mês o livro Mário Pedrosa, Crítico de Arte e da Modernidade, que recupera as principais ações de Pedrosa no Brasil e no Chile.
A obra traz os principais pontos de rejeição à ideia de modernidade na década de 1950 e revela detalhes da amizade entre Pedrosa e Mário de Andrade, ressaltando semelhanças e divergências entre o pensamento do crítico e do artista realizador da Semana de Arte Moderna de 1922. Também expõe a influência do trabalho com pessoas com esquizofrenia no surgimento da arte concreta, destaca o caráter grandioso da curadoria da VI Bienal de São Paulo e relata seu protagonismo na criação do Museu da Solidariedade Salvador Allende durante o exílio no Chile, de 1970 a 1973.
O livro foi escrito por Glaucia Villas Bôas, socióloga e professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs/UFRJ). A publicação contou com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e está à venda no site da Editora UFRJ. Para entender mais a obra e as motivações por trás dela, o Conexão UFRJ conversou com a autora. Confira a entrevista completa a seguir:
Conexão UFRJ: Por que você decidiu estudar o Mário Pedrosa?
Glaucia: Há alguns anos, dei início a uma pesquisa sobre o surgimento da arte abstrata concreta no Rio de Janeiro, abarcando o período de 1946 até 1959. Meu encontro com Mário Pedrosa aconteceu no decorrer desse estudo, como não podia deixar de ser. Afinal, Pedrosa foi um dos arquitetos do abstracionismo geométrico, movimento do qual fizeram parte artistas como Abraham Palatnik, Almir Mavignier, Ivan Serpa, Hélio Oiticica, Lygia Pape, Lygia Clark, entre tantos outros. O resultado desse projeto está no livro publicado em 2022: Forma Privilegiada. A Arte Concreta no Rio de Janeiro de 1946 a 1959. Na realidade, no percurso desse trabalho fui conhecendo cada vez mais o crítico e escrevendo sobre ele. Daí surge o livro que acaba de ser publicado pela Editora da UFRJ, Mário Pedrosa, Crítico de Arte e da Modernidade.
Conexão UFRJ: O que o livro revela sobre a relação entre Mário Pedrosa e Mário de Andrade, um dos responsáveis pela Semana de Arte Moderna de 1922?
Glaucia: Antes de mais nada, o livro revela que houve uma proximidade afetuosa entre Mário Pedrosa e Mário de Andrade no fim dos anos de 1920. Esse encontro foi esquecido pelos estudiosos de ambos os intelectuais. Mário de Andrade ficou circunscrito ao modernismo dos retratos do Brasil e Pedrosa ao modernismo universalizante da década de 1950. No capítulo, apresento uma conversa dos dois através de cartas e outros documentos, em que falam até mesmo sobre Macunaíma. Chamo a atenção ainda para a militância política dos dois Mários: Mário de Andrade à frente do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo e Mário Pedrosa, criando uma vertente trotskista no Brasil. Apesar de opções distintas, uma institucional e outra revolucionária, ambos se diferenciam pelo empenho político em transformar o mundo. Finalmente, um dos pontos que considero mais relevante no capítulo é mostrar como, no âmbito das ideias, ambos valorizaram o passado e as diferenças étnicas culturais na concepção de moderno que cada um elaborou. Ao analisar essa presença tão forte do passado no pensamento dos dois, eu me pergunto se o modernismo brasileiro, apesar de se constituir de orientações diferentes, não acaba por afirmar, ao longo do tempo, a centralidade da política, a crítica ao universalismo e o apreço pelo passado.
Conexão UFRJ: Como Nise da Silveira, psiquiatra que valorizou a prática da Terapia Ocupacional no tratamento psiquiátrico brasileiro, tem influência na arte concreta?
Glaucia: Bem, não trato de uma influência da prática terapêutica, tal como pensada e vivida pela Dra. Nise, no surgimento da arte concreta. Longe disso. O que é marcante nessa história é a sociabilidade que o Ateliê do Engenho de Dentro, localizado no antigo Hospital Psiquiátrico Pedro II, conseguiu engendrar, ao reunir artistas com o diagnóstico da esquizofrenia como Adelina Gomes, Raphael Domingues e Emygdio de Barros, entre outros, com os jovens Serpa, Mavignier e Palatnik, Dra. Nise e Mário Pedrosa. No decorrer de cinco anos, as relações intensas de troca afetiva e intelectual possibilitaram tanto a valorização do que Pedrosa chamou de Arte Virgem como o surgimento de nova linguagem abstrata.
Conexão UFRJ: Como Pedrosa estava envolvido nas obras de arte feitas pelos pacientes de Nise da Silveira?
Glaucia: A vivência no Ateliê do Engenho de Dentro repercutiu em toda a obra posterior de Pedrosa e foi sempre lembrada pelo crítico. Ele reconhecia o valor da pintura dos internos e dos jovens artistas do Ateliê. Foi naquele período que Pedrosa assentou as bases conceituais de sua crítica de arte, escrevendo a tese “Da Natureza Afetiva da Forma na Obra de Arte”, de 1949. Nesse texto, assim como na crítica que publicava em sua coluna no jornal Correio da Manhã, notam-se as referências que faz à pintura dos internos do hospital.
Conexão UFRJ: Qual o diferencial da VI Bienal de Arte de São Paulo comandada por Pedrosa? O que isso representa?
Glaucia: A Bienal-Monstro, como chamei o capítulo do livro sobre a VI Bienal de São Paulo, é um convite ao leitor a revisitar a memória do evento que comemorava os 10 anos da Bienal de São Paulo, sob a curadoria de Pedrosa, então diretor do MAM de São Paulo, instituição responsável pela organização da Bienal. Pedrosa naturalmente queria comemorar o aniversário com toda a pompa que ele merecia. Convicto de sua concepção de modernidade, que, como já mencionei, preservava o passado e as diferenças étnicas e culturais, ele dispôs, lado a lado, na exposição, a arte barroca das Missões do Paraguai do século XVII, a caligrafia japonesa dos séculos XII até XVIII, cópias de afresco em estilo bizantino dos séculos XII e XV da Iugoslávia com obras de artistas dos mais modernos, como os brasileiros Lygia Clark e Tomie Ohtake, apenas para citar esses dois exemplos. A reação foi enorme. Pedrosa contrariava a orientação primordial da Bienal de que o evento deveria se voltar para a arte de vanguarda. A VI Bienal foi logo chamada de museográfica e historiográfica, características que se inscreveram na sua memória durante muitos anos. Ninguém atentou que, na realidade, a exposição se fundara no pensamento de Pedrosa sobre a preservação do passado e das diferenças na modernidade, modo de pensar raro, naquela época, em que o passado deveria ser banido para dar lugar ao novo.
Conexão UFRJ: Quais as principais críticas de Pedrosa à modernidade?
Glaucia: Uma das principais críticas de Mário Pedrosa à modernidade é a perda da sensibilidade humana nesse contexto histórico. A racionalidade técnica, ao exigir que a conduta coletiva ou individual seja calculada e rentável, rouba o tempo do sentir. As pessoas, assim como a entrega das mercadorias, devem ser cada vez mais velozes. Como dizia o sociólogo alemão Georg Simmel, numa galeria de arte, a maioria quer ver o maior número de obras em um menor tempo. Mas, segundo Pedrosa, a arte ainda poderia promover o despertar dos sentimentos e das emoções. Além da questão da sensibilidade, o crítico se posicionava contra o progresso que destrói as culturas originais. No fim de sua vida, Pedrosa combateu de forma contundente a destruição dos indígenas e da cultura indígena no Brasil.
Conexão UFRJ: Exilado no Chile, Pedrosa foi um dos fundadores do Museu de Solidariedade Salvador Allende. O que ele representa e por quais momentos passou?
Glaucia: Ao exilar-se em Santiago do Chile em 1970, Mário Pedrosa se distinguiu pela criação do Museu da Solidariedade, em 1972. O acervo do museu foi constituído por doações de artistas de diversas partes do mundo em apoio ao governo socialista de Salvador Allende. Para que o projeto se concretizasse, Pedrosa não somente esboçou o modelo do museu como mobilizou uma rede de amigos, amigas e colegas através de uma volumosa correspondência. Miró, Calder, Antonio Dias, Hélio Oiticica, Argan, entre muitos outros artistas, críticos, diretores de museus, trocaram cartas com Pedrosa para viabilizar o museu. O golpe de Pinochet interrompeu violentamente o projeto que já contava com mais de 600 obras e duas exposições. Uma segunda fase de construção do museu ocorreu no exílio, graças ao empenho de chilenos e outros exilados. O museu ganhou o nome de Museu da Resistência Salvador Allende. Essa fase contou ainda com a participação de Pedrosa, que se exilou no México e depois na França. Durante a redemocratização do Chile, ressurge o museu como Museu da Solidariedade Salvador/MSSA Allende, um monumento que guarda a memória de um acontecimento singular e único na história da arte e da política.
Glaucia Villas Bôas é professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora do CNPq e integrante do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ. Tem artigos e livros publicados nas áreas de teoria sociológica e sociologia da cultura e da arte. Dentre os livros, destaca-se Forma Privilegiada. A Arte Concreta no Rio de Janeiro de 1946 a 1959, publicado em 2022.
*Sob a supervisão do jornalista Sidney Rodrigues Coutinho.