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Conexão Literária

Conexão Literária #9: O mito de Nailah

Beatriz de Moura apresenta-nos um mito como quem tece com as palavras

0. Quando finalmente visitei minha avó, meu coração pesava. Entupida do que não era meu, então, vazia. Minha avó aprendeu a reconhecer muito antes de mim, a mais nova, como a desordem se manifestava nos olhos dessa família. Ela quis me contar uma história. Quis ouvi-la com tanta vontade quanto na infância. 

1. No final da República, de Platão, o mito de Er conta a vida da morte de um soldado, morto em combate e vivo no além. 

0.2. Quando éramos mais crianças do que adultos, ela precisava inventar mais histórias e tossia à noite por usar muito a voz. Minha prima mais velha pedia a ela que escrevesse aquilo que nos encantava, e minha avó dizia que aquele encanto só existia na voz falada. Com o tempo todos nós ficamos viciados na leitura e minha avó ficou sem ter por que falar. 

0.3. Acomodei um corpo que estalou inteiro sobre um amontoado de almofadas, abaixo da janela de luz amarelada que apertava o peito de nostalgia. Minha avó fez mingau para duas. Afastou muitos livros de um canto onde pudesse sentar. Sua voz começava a ninar minhas dores. 

2. No além, as Moiras, filhas da deusa Ananque, tecem o fio da vida de cada coração existente. São responsáveis por aquilo que cabe a cada alma, a cada história. Distribuem os lotes de qualidades. As três irmãs do destino. Domadoras de homens e de Deuses − em suas ordenações não há interferências de nenhum tipo. 

Em certo momento de uma eternidade, as irmãs fazem, de uma mortal, uma aprendiz. Nailah, uma humana que procurava causar turbulências, ameaçando uma harmonia hierárquica, filosofando por uma vida sem Deuses, acreditava que suas arrogâncias influenciavam os mortais. Crítica ferrenha de Prometheu, é levada até as Moiras e desafiada por Láquesis: “Com pedaços de nossas teias você deverá criar um pedaço de seu mundo. À semelhança deste em que vive, com suas próprias regras. Você terá seus próprios humanos. Se esse mundo lhe parecer melhor que este em que nasceu, você poderá viver nele. Se falhar, será castigada.” 

No início, Nailah dedica grande parte de um tempo próprio para entender as teias. Tocá-las, esticá-las, arrebentá-las. Eram de um material vivo, vez ou outra não eram cúmplices de seus estudos. Nailah quis domá-las; não foi possível. Suas disposições em conjunto eram complicadas de permanecer, exigiam um conhecimento específico que não pertencia a Nailah. As Moiras não interferiam. A avisaram: faça com o que sabe. Enquanto desvendava as teias, fazia protótipos de seu sonhado mundo. Não faria como as Moiras − as teias seriam dispostas aos seres humanos, e não o contrário. Nasceriam neutros, predispostos a nada, conseguiriam enxergar as teias e escolher por si. As teias teriam os significados estampados e seriam bilhões delas, para que o número de possibilidades fossem infinitos. E o próprio mundo seria de teias: sem distrações, os humanos, em vez de andar, aprenderiam a escalar e não parariam de escalar suas teias enquanto não alcançassem a ascensão ao Divino − seus próprios Divinos, eles mesmos se transformariam Divinos e não seriam menos poderosos que nenhum dos Deuses. 

Nailah quis o tempo. Enquanto esteve no projeto, envelheceu. Envelheceu conforme adquiria sabedoria sobre as teias. Tecia o tempo todo de costas para as Moiras. Às vezes se perguntava de que maneira se comportava sua própria teia de vida, nas mãos das irmãs. 

Primeiro, teceu o fim − uma ponte em rede muito fortificada, que se estendia desde a caverna das Moiras até a entrada do Olimpo. O fim da escalada seria próximo às Moiras; cada Divino Humano faria uma visita a essas que costumavam manipular suas vidas. Depois completariam o descanso eterno no Olimpo: no fim de cada vida bem vivida − no mundo de Nailah todas as vidas seriam bem vividas, pois ela sabia que cabia às Moiras e aos Deuses a culpa das falhas humanas − a escalada os levaria à imortalidade. 

3. Nailah cuidou da construção de seu mundo com muito cuidado e paciência. Atados à grande ponte, despencavam os bilhares de fios e seus inícios ficavam embebidos em um grande oceano de líquido vital, de onde os humanos floresceriam. Ela desceu por entre cada teia, discernindo seus papéis. Alguns fios seriam de fortuna, para que os humanos com aptidões gestoras pudessem gerir a riqueza do mundo; outros fios seriam de sensibilidade, para que os humanos artísticos ascendessem através de suas artes; outros fios seriam de praticidade, para os humanos que soubessem desenvolver utilidades; outros fios seriam de disciplina, para os humanos que escalariam pelo poder do propósito; outros fios seriam de liderança, para os humanos que compartilhariam seus conhecimentos; outros fios seriam de honra, para os humanos que buscassem ascender sem pressa; outros fios seriam de valentia, para aqueles que seriam os primeiros humanos a desbravar a escalada; outros fios seriam de prudência, para os humanos que tomassem cuidado com si e com os outros; outros fios seriam de independência, para os humanos que estivessem focados em sua própria jornada; outros fios seriam de sabedoria, fios pelos quais todos, invariavelmente, passariam. E, cantando suas regras, nenhum humano estará predisposto a qualquer fio se não aquele que o mesmo escolhe quando floresce; nenhum fio é o correto ou essencial além dos da sabedoria, pois não se ascende ao Divino sem ser sábio − e no mundo de Nailah todos os humanos certamente buscariam a sabedoria, já que as ignorâncias dos Deuses não interfeririam como no mundo comum. Uma vida pode ser composta de um fio ou de milhares, desde que permanecesse a vontade do indivíduo humano acerca de seu próprio caminho. 

Ao finalizar, Nailah retorna, contente, às Moiras, que pedem a Chronos que acelere o tempo desse novo mundo para que a dona mortal pudesse observar seu desenvolvimento. 

4. O novo mundo é decepcionante a Nailah desde o primeiro momento. Ao florescerem, apesar de não predispostos a nada, os humanos sabem que podem ascender − e fazem qualquer coisa para tal. Alguma penca de poucos homens se agarra aos fios de riqueza, não para gerir, mas para conter, e muitos desses vão em busca de outros fios, os de inteligência, de independência, de criatividade, para estocar o máximo que puderem e arrebentar os que não cabem mais em si. Algo impensável a ela acontece: muitos humanos aprendem a esticar as teias para fazerem morada dentro delas − apesar de saberem escalar e saberem o que os espera, não o fazem. Outros tantos chegam só longe o suficiente de onde poucos detentores de muitas teias permitem: dois irmãos subiam pelas teias da valentia quando ela mesma foi arrebentada por um bando. Alguns humanos não saíram do líquido vital, escutavam hipnotizados por uns outros escaladores de fios da liderança que os induziam a permanecer ali, enchendo-os de promessas vazias. Outros tantos estavam pelo meio do caminho, enrolados entre dezenas de fios, perdidos e engolidos por tantas possibilidades. A fortaleza da ponte se sustenta por uma pequena existência, até ser engolfada pelo líquido vital e afogar todos os humanos. 

5. Nailah se enfureceu em meio à sua tristeza e vergonha, cega em sua ambição, perdida em seu propósito: “É porque eles são humanos! Têm naturalmente muitos defeitos!” Laquésis foi a única a prestar atenção: “Também têm muitas virtudes.” 

6. Diz-se que Nailah permaneceu por meses em seu posto anterior, de costas para as irmãs, muito orgulhosa e amedrontada para encarar seu castigo. Por muito tempo, o único que sabia era a vista de seu mundo estraçalhado e o som do movimentar das cordas novas e antigas pelas Moiras. 

Um dia, exausta com os pesos da mortalidade sentidos no corpo, perguntou a Laquesis: “Qual é o meu castigo?” Ao que finalmente foi respondida: “Volte para o mundo onde nasceu.”

Beatriz de Moura é estudante de Psicologia na UFRJ e já cursou Cinema e Audiovisual. Busca o entrelace entre o psicológico e o artístico. Está em @beatrizpdmoura no Tumblr e no Instagram.