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Renovação ou atraso?

Governo quer modernizar frota rodoviária de carga retirando recursos de pesquisas do setor de óleo e gás

A Medida Provisória nº 1.112/22 parece a encenação de um programa de auditório, no qual o apresentador pergunta a alguém em uma cabine à prova de som se está disposto a trocar algo precioso por outra coisa completamente sem valor. No caso, a troca é de sucata de caminhões obsoletos, com idade acima de 30 anos, por pesquisas de ponta e tecnologia desenvolvida em exploração de óleo e gás. Seria cômica se não fosse trágica a proposta assinada, no dia 31/3, pelo presidente Jair Bolsonaro para instituir o Programa de Aumento da Produtividade da Frota Rodoviária no País (Renovar).

De acordo com a MP, a ideia é trazer melhoria de qualidade de vida aos motoristas ao retirar das estradas não só caminhões, mas também ônibus e outros veículos de carga. A iniciativa, que contribuiria também com as metas previstas no Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito (Pnatrans), poderia ser até considerada positiva, caso não admitisse desviar recursos de pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) das empresas que hoje são aplicados em diversas instituições de ciência e tecnologia.

Em contrapartida, pela cessão para exploração de bacias petrolíferas, a Lei nº 9.478/97 determina que parte da receita bruta da produção de óleo e gás (entre 0,5 e 1%) seja destinada a projetos de PD&I no país. A MP inviabiliza a legislação atual ao possibilitar às empresas exploradoras de petróleo e gás aplicar, sem limites, esses recursos para a atividade de desmonte ou destruição como sucata dos veículos pesados em fim de vida útil. “Desde que foi instituída, a lei permitiu a criação de 150 laboratórios distribuídos pelo país, além de permitir o convênio e contratos com mais de 200 universidades e institutos de pesquisas. Os recursos propiciaram o desenvolvimento de tecnologias para obtenção de hidrogênio verde, energia eólica em plataformas marítimas e biocombustíveis”, afirmou o presidente da Academia Brasileira de Ciências, Luiz Davidovich, em entrevista disponível no YouTube e concedida a um portal de notícias sobre indústria e energia.

Diversas entidades ligadas à ciência foram signatárias, no início de abril, de nota encaminhada ao Congresso Nacional, entre elas a Academia Brasileira de Ciências (ABC), a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), o Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). No dia 10/5, foi a vez de o Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, emitir nota.

Para o diretor da Coppe, professor Romildo Dias Toledo Filho, os prejuízos serão diversos caso as empresas venham a aderir ao programa: a MP afetará, por exemplo,  tanto a formação de recursos humanos, pois na instituição são formados muitos mestres e doutores nessa área de conhecimento, quanto a continuidade dessa formação dos pesquisadores que já estão no mercado de trabalho. “Desde 1977, a Coppe desenvolve projetos em parceria com empresas do setor de óleo e gás. Petrobras inicialmente, depois as outras operadoras que estão no país para o avanço do conhecimento nessa área. Grande número de laboratórios funciona hoje com infraestrutura moderna, bem montados em termos de equipamentos em decorrência desses recursos. Teríamos ameaças de desmanches de grupos de pesquisas, dificuldade de funcionamento dos laboratórios. Seriam prejuízos dos mais variados tipos”, afirmou o diretor.

Segundo ele, só na UFRJ a estimativa é de que 80 laboratórios sejam atingidos diretamente. As empresas de óleo e gás estão migrando para desenvolver novas tecnologias, tendo a visão de que é uma área de produção de energia. “Com a transição energética, que leva inclusive as empresas a trocar o próprio nome, o desenvolvimento de novas tecnologias também seria afetado. O programa Renovar deveria ser custeado com recursos da União, e não com o que é hoje aplicado em inovação, que nos prepara para o uso de energia mais limpa, para o futuro”, disse Toledo.

Átila Freire acha que a perda de recursos levará também o conhecimento, desde projetos a criação e aperfeiçoamento de equipamentos

Outro que destaca que a saída dos recursos de participação especial afeta diretamente a evolução tecnológica do Brasil no setor de óleo e gás é o professor Átila Freire, coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Dinâmica de Fluídos (Nidf), que reúne nove laboratórios. “Com o conhecimento aqui desenvolvido, várias respostas são dadas às empresas hoje. É enorme a contribuição. Inclusive, a legislação do setor já foi alterada em conformidade com dados gerados aqui dentro, o que trouxe muita economia para as empresas e para o Brasil, fazendo com que todo o investimento já realizado fosse pago várias vezes”, destacou ele.

Segundo Freire, está no Nidf, por exemplo, a fronteira do conhecimento sobre incrustação inorgânica nos equipamentos utilizados na exploração do pré-sal, um problema muito grave. “Se a gente perde os recursos, também perde o conhecimento, desde projetos a criação e aperfeiçoamento de equipamentos. Não é só saber como funcionam os equipamentos, mas por que eles funcionam em determinados parâmetros. Todo o Brasil perde, é um conhecimento que levou anos para ser construído. Tudo isso vai embora a troco de nada. Qual é o valor agregado de sucata de caminhão? Que benefício isso terá para o país? Zero. Retiram-se recursos de um setor que é essencial e se levam para outro que não é. Acho que as empresas estrangeiras, as que têm responsabilidade social, dificilmente vão aderir. O mundo corporativo atualmente compreende a importância de dar benefício para a sociedade do local onde as empresas atuam”, concluiu.