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Olhando além

Maior telescópio do mundo terá participação de astrônomo da UFRJ no desenvolvimento

Apesar de não contar com apoio governamental, os brasileiros poderão dar uma espiada no infinito e além pelo maior telescópio do mundo, o Extremely Large Telescope (ELT, em tradução livre do inglês: Telescópio Extremamente Grande), do Observatório Europeu do Sul (ESO). Em construção em Cerro Armazones, no deserto chileno do Atacama, e previsto para estar concluído em 2027, após paralisação nas obras em decorrência da pandemia de covid-19, o ELT é considerado pelos idealizadores o maior “olho do mundo”, graças a um espelho principal de 39 metros que o tornará o maior instrumento criado para observar o espaço por luz visível e infravermelho.

De acordo com Thiago S. Gonçalves, professor de Astronomia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que coordena, desde meados de 2021, uma das diversas equipes do ELT, o Brasil terá participação importante no projeto. “Não só eu, mas outros brasileiros são membros de grupos de trabalho, em particular a astrofísica Beatriz Leonor Silveira Barbuy. Ela é professora do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo (USP) e uma das coordenadoras gerais do projeto. Isso acaba contribuindo para a participação brasileira”, informa o professor.

O ESO aprovou por unanimidade, em 2010, a entrada do Brasil como o primeiro membro não europeu do consórcio que reúne atualmente o Chile e diversas nações (Áustria, Bélgica, República Tcheca, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha, Irlanda, Itália, Holanda, Polônia, Portugal, Espanha, Suécia, Suíça e Reino Unido). O país teria que desembolsar R$ 1 bilhão, parcelados ao longo de dez anos. O Congresso Nacional aprovou a participação verde e amarela, que também daria acesso dos astrônomos brasileiros à rede de telescópios do ESO, em La Silla e Cerro Paranal, no Chile, e ao maior complexo de radiotelescópios do mundo, o Alma, também no Chile, entre outros equipamentos, desde que houvesse colaboração na construção de observatórios.

Embora o ESO tenha renegociado os termos e concedido um desconto para o Brasil, o país não conseguiu honrar com a sua parte financeira e, em 2018, acabou desligado do consórcio por falta de pagamento. Esse revés para a ciência e tecnologia brasileiras ocorreu no final do governo de Michel Temer e, como a cadeira sucessória contaria com um astronauta no Ministério da Ciência e Tecnologia, acreditava-se que o país voltaria a se sentar na mesa de negociação, já que o ESO não bateu o martelo pelo desligamento do Brasil. Contudo, com os constantes cortes de gastos, ampliar o conhecimento em astronomia e astrofísica não despertou interesse da gestão. A indústria nacional, assim, deixou de concorrer a contratos relevantes em instrumentos de alta tecnologia, construção civil e metalurgia pesada.

O Telescópio Extremamente Grande

O ELT é um projeto ambicioso pelo tamanho do espelho, mas também pela estrutura que será montada para construir um domo giratório que protegerá de danos toda a estrutura e acompanhará o movimento dos astros de um ponto fixo a uma altitude de 3.046 metros acima do nível do mar. Na prática, a superfície de 978 metros quadrados do espelho principal (quase metade de um campo de futebol) é composta por 798 espelhos hexagonais de 1,4 metro cada um, milimetricamente encaixados, que podem ser limpos e eventualmente substituídos individualmente.

Segundo Gonçalves, a localização é primordial para se investir mais de 1 bilhão de euros na construção do telescópio. A aridez e a altitude da montanha Cerro Armazones contribuem para reduzir as distorções proporcionadas pela atmosfera. “Imagine olhar para o céu do fundo de uma piscina. É equivalente ao problema que temos para fazer uma observação astronômica da Terra. Há uma camada ao nosso redor que distorce as imagens e os dados que estamos recebendo. É importante tentar colocar o observatório em um ponto alto para se ter menos ar sobre você, como se fosse a parte rasa da piscina. O Atacama e o Havaí, devido aos vulcões que tornam o ar seco, são os melhores pontos que oferecem essas condições”, esclareceu. 

Mas há outros truques para ter a visão nítida do espaço. Para captar uma quantidade de luz superior a 100 milhões de vezes o que o olho humano consegue enxergar, existe um jogo de cinco espelhos refletindo a luz do espaço até a chegada ao instrumento de captação. O espelho secundário, por exemplo, é o maior refletor convexo já construído pelo homem. Já o quarto será o maior espelho adaptativo criado, por contar com 8 mil atuadores (ajustáveis para conter as distorções de imagem produzidas pela atmosfera e da atuação dos ventos no espelho principal). Ao chegar ao quinto espelho, as distorções da camada atmosférica serão quase inexistentes.

O prédio que abrigará toda a estrutura chegará a 80 metros de altura, quase o triplo do Cristo Redentor (38 metros) e mais alto que o Taj Mahal (73 metros), na Índia. O diâmetro da edificação será de 88 metros e a estimativa é de que pese quase 10 mil toneladas, no somatório da estrutura (3.700 toneladas) com o peso da cúpula (6.100 toneladas), que contará com painéis que reduzirão os ventos e a quantidade de areia que pode atingir o espelho principal. Há muita tecnologia e conhecimento envolvidos só na construção. Além do vento e da areia, que atingirão inevitavelmente o equipamento, os tremores de terra na região também foram considerados para conceber toda a estrutura.

Espectrógrafo multiobjetos

Para observar e examinar as centenas de bilhões de galáxias, com os bilhões de estrelas que possuem, o ser humano precisa de um instrumento específico que possa medir a luz de muitos objetos diferentes ao mesmo tempo. É isso que o Mosaic, espectrógrafo multiobjetos, faz: trabalha como uma máquina que serve para acompanhar e desvendar o crescimento das galáxias e a distribuição da matéria desde o big bang até os dias atuais. Se compararmos com o funcionamento de uma câmera fotográfica, com o ELT é possível captar mais luz e enxergar mais longe. E o Mosaic permite realizar a decomposição das ondas de luz, como o prisma faz ao dividir a luz branca em outras sete tonalidades para formar o arco-íris.

Segundo o professor, as grandes descobertas deverão vir depois de 2030. O que se faz, por enquanto, tem a ver com a capacidade técnica e o desenvolvimento de novas tecnologias: “Podem-se trocar as câmeras do telescópio a cada noite. E o Mosaic será uma dessas câmeras. Eu coordeno uma equipe de 70 pessoas, com outros dois pesquisadores, um da Inglaterra e outra da Suíça. Nos próximos dez anos, nosso trabalho, em particular, será realizar simulações de observações e guiar as especificações técnicas do instrumento. Vamos fazer simulações e informar quais serão as especificações técnicas que permitirão fazer as observações e atingir os objetivos científicos”.

Após o big bang, apenas quando a matéria escura e o gás se aglutinaram com o esfriamento do universo, estrelas e galáxias começaram a brilhar. A radiação energética dessas estrelas reionizou (elétrons arrancados dos núcleos atômicos) o gás neutro restante, mas exatamente quando e como tudo isso ocorreu permanece um mistério que o Mosaic poderá ajudar a solucionar. Com o Mosaic, os astrônomos tentarão reconstruir a linha do tempo da reionização. Ele vai fornecer a maior amostra observacional das primeiras galáxias, com poder de resolução espectral suficiente para determinar as propriedades de suas populações estelares, bem como do meio interestelar,  a matéria que existe entre as estrelas. O instrumento também será usado para ver a composição química dos exoplanetas por meio do tipo de luz que emitem, um tipo de marcador para verificar se são capazes de sustentar vida.

Networking

O trabalho efetivamente está começando agora, segundo o professor Gonçalves, que está desde 2010 atuando em atividades com os pesquisadores do ESO, mas só no ano passado passou a coordenar uma equipe. “Estamos entrando em uma segunda fase, após nos organizarmos, para determinar as especificações técnicas do telescópio. Quando elas estiverem finalizadas, permitirão desenvolver os projetos de verdade para o telescópio. E espero continuar na equipe”, diz ele, ressaltando que a atividade atual deve levar três anos.

O astrônomo e pesquisador da UFRJ conta que tudo começou após o doutorado nos Estados Unidos há uma década. “Considerei fazer um pós-doc com o líder geral do projeto, que na época era um francês. Isso acabou não dando certo, mas eu acabei me envolvendo cada vez mais com o ESO desde então. Eu acho muito importante e tento reforçar para os meus alunos dentro da UFRJ o quão importante é ir além de ficar apenas em um grupo de trabalho, sob orientação de uma única pessoa na carreira inteira, dentro apenas de um instituto. É preciso relacionamento interpessoal (networking) para abrir as portas e fazer essas conexões internacionais, são fundamentais”, revelou a fim de mostrar uma alternativa para os cientistas brasileiros superarem as deficiências do país, que ainda precisa de um telescópio potente para enxergar os benefícios da ciência para a sociedade.