*Texto publicado originalmente no blog do Laboratório de Limnologia da UFRJ
No período letivo 2020/1, o Instituto de Biologia da UFRJ ministrou pela primeira vez a disciplina eletiva “Mulher, Ciência e Meio Ambiente”. A inspiração veio de uma palestra ministrada por duas alunas sobre a naturalista e ilustradora científica Maria Sybilla Merian, durante a ECO: Semana de Integração do Programa de Pós-graduação em Ecologia de 2019.
O objetivo da disciplina foi discutir sobre o lugar da mulher nas ciências e nas questões ambientais, promovendo a troca entre a academia e lideranças de movimentos sociais. Através desses diálogos, as convidadas, de diversas gerações, trouxeram seus conhecimentos e experiências, com os desafios, a resistência e a ação concreta de grupos de mulheres, que servem de inspiração para alunas e alunos. Conversamos, por exemplo, com Miriam Nobre, da Marcha Mundial das Mulheres e da Articulação Nacional de Agroecologia; com Cris dos Prazeres, que coordena o Projeto ReciclAção no Morro dos Prazeres; com Juliana Deprá, do Movimento pela Soberania Nacional na Mineração (MAM), entre tantas outras que compartilharam conosco suas ricas histórias de vida e luta por justiça ambiental e social. Conversamos também com a professora Karin Calaza, do Departamento de Neurobiologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), que coordena o Grupo de Trabalho Mulheres na Ciência e nos apresentou, na perspectiva de sua área, o viés implícito de gênero.
O sucesso do empreendimento foi tão satisfatório para os participantes que o grupo de WhatsApp da turma, com o objetivo de discutir e divulgar informações relacionadas aos temas abordados na disciplina, agora é também aberto a pessoas ligadas à Biologia na cidade do Rio de Janeiro. O grupo pretende ser um espaço de acolhimento e divulgação de informações e eventos, onde os integrantes possam abordar assuntos sensíveis sobre temas que os tocam.
Conversar com as mulheres sobre suas expectativas e realidades é fundamental para traçar transformações a partir das nossas experiências acadêmicas. As pessoas são especialistas em suas próprias vidas, comunidades e territórios, e por isso têm um conhecimento único para propor soluções factíveis e sustentáveis. Nosso desafio é debater na academia o quanto esse diálogo é absolutamente necessário para entender os desafios socioambientais que enfrentamos hoje; a articulação entre academia e sociedade é essencial para conseguirmos identificar as demandas específicas das pessoas sobre os lugares onde vivem e entender problemas derivados, por exemplo, das mudanças climáticas.
Indivíduos e grupos sociais não são meros receptores, mas sim atores com poder de ação coletiva. Quando dialogamos com esses diversos atores temos uma visão sistêmica dos problemas, aprendemos como outras pessoas e movimentos sociais traçam estratégias e, dessa forma, conseguimos desenvolver soluções eficazes e potencializar e multiplicar os resultados obtidos. Por outro lado, existem importantes iniciativas nas roças, nos bairros e nas cidades que ficam invisíveis, e, por isso, precisamos mudar as narrativas e práticas e visibilizar o que está sendo feito. Criar laços entre a sociedade e a academia, um senso de comunidade é extremamente importante se queremos combater os negacionismos e democratizar a ciência.
Isso é ainda mais importante quando falamos da vida das mulheres. A conexão entre ecologia e direitos sociais fica muito evidente se lembrarmos que já é comprovado como os grupos humanos em situação de vulnerabilidade tendem a sofrer mais com os desastres naturais causados pela ação humana, como mudanças climáticas, desertificação, deslizamentos de terra e derramamentos de petróleo.
As mulheres, entretanto, costumam ficar invisíveis na nossa compreensão do mundo e na produção de conhecimento. Via de regra, mulheres sofrem as consequências desses desastres de forma diferenciada quando comparadas aos homens, segundo o informe da convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. Apenas 50% das mulheres em idade de trabalhar estão representadas na população economicamente ativa no mundo, com a esmagadora maioria das mulheres atuando na economia informal, no sustento do trabalho de cuidados em casa, além de concentradas em empregos com menor qualificação e que pagam salários mais baixos, tendo pouca ou nenhuma proteção social (Comissão sobre a Situação das Mulheres). Enquanto as pesquisadoras, apenas 30% são mulheres, segundo o informe do Instituto de Estatística da Unesco. Seja nas instituições ou na vida cotidiana, as mulheres tendem a ser excluídas do processo de produção do conhecimento e da formulação e tomada de decisões.
Isso nos leva a identificar como fundamental: entender que as desigualdades de gênero não são condições naturais e aumentar a visibilidade dos problemas e soluções que as mulheres têm enunciado a respeito das questões ambientais. Considerando os significativos desafios apresentados para as mulheres em todo o mundo, é essencial que sejam ouvidas.
A escuta e a interação com os saberes tradicionais e populares se fazem também fundamentais quando se trata de reconstruir a nossa relação com a natureza e o que consideramos natureza. Os problemas ecológicos ou ambientais estão intrinsecamente ligados a questões de saúde e vulnerabilidade e as mulheres têm muito a dizer sobre isso: precisamos não só coproduzir conhecimento, mas também reconstruir uma nova ética do cuidado de forma muito urgente.
Neste mês de março, nada mais oportuno do que ouvir as vozes do feminismo por uma nova ética, que recupere como foco a vida das pessoas, com igualdade, justiça social, democracia, harmonia com o meio ambiente e solidariedade. Portanto, precisamos fortalecer o diálogo com os movimentos pelos direitos ecológicos e ambientais junto com os movimentos do campo de direitos humanos. Mulher, ciência e meio ambiente são essenciais no esforço comum para alcançar os resultados de uma vida mais coletiva e sustentável.
Nota: a disciplina finalizou com a realização de trabalhos em formato de vídeo tratando de assuntos relacionados aos temas da disciplina. Seguem alguns exemplos:
“A atuação feminina na militância ambiental”
Autores: Guilherme Rocha, Laíla Iglesias e Manoela Cotta
Tutora: Erika Garcez
“Disparidades de gênero encontradas no meio acadêmico e sua relação com o contexto sociocultural no qual as mulheres se encontram”
Autoras: Amanda Rosa, Marina Pimpão e Natália Nery
Tutora: Daniela Chaves
*Nuria Pistón é pós-doutoranda e docente colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Ecologia da UFRJ
*Míriam Starosky é mestra em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp/Uerj) e chefe de gabinete da coordenação do Fórum de Ciência e Cultura (FCC) da UFRJ
*Ana Souza é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ecologia da UFRJ
*Mariana Vale é professora associada no Departamento de Ecologia da UFRJ