Entrei na escola aos 3 anos de idade. Era uma escola pequena, dessas que a gente chama de “escola de bairro”. A escola sempre foi para mim um lugar de encontros e reencontros, de estreitamento de laços, de aprendizado contínuo. Naquela escola, todos me conheciam, da tia do portão à diretora. Embora não houvesse muitos professores e alunos negros, talvez por se tratar de uma escola bem pequena, eu não me sentia excluída. Nunca fui vítima de racismo lá.
Aos 9 anos, mudei de escola. Meus pais queriam que eu estudasse numa escola “melhor”, em que o ensino fosse “mais puxado” e que me preparasse para o vestibular e para a vida. Ao contrário da anterior, a nova escola era enorme! Tinha um pátio grande cheio de árvores, duas quadras, um campo de futebol, uma sala de vídeo, um laboratório e uma biblioteca imensa. Além das aulas de Português, Matemática, Ciências etc., eu também tinha aulas de Música, Teatro, Inglês, Dança e Religião. Quanta novidade!
Só não era novidade que, naquela escola grande, bonita, situada num bairro nobre da minha cidade, quase não havia crianças negras. Eu era a única negra da minha turma e do meu andar todinho. Lá, um novo horizonte se abriu para mim e eu adquiri muitos conhecimentos. Infelizmente, foi lá também que eu conheci o racismo. Sofria discriminações quase que diariamente e as “piadas” sobre o meu cabelo e a cor da minha pele eram frequentes. A escola, que sempre foi para mim um lugar de pertencimento, tinha se tornado um lugar de opressão, onde eu não me sentia acolhida no meio de todas aquelas crianças brancas.
As aulas de História eram muitas vezes o gatilho para as tais piadas, engraçadas para a maioria dos meus colegas, mas para mim um sofrimento. Quando o professor ou a professora começava a falar sobre o tema “escravidão”, todos os alunos me olhavam; alguns riam, associavam as figuras do livro a mim e à minha família. Eles zombavam das minhas características físicas. Eu queria enfiar a cabeça embaixo da carteira ou pedir para ir ao banheiro e só voltar no fim da aula. Tinha vergonha de mim e das minhas origens. Com receio de que minha mãe fosse à escola reclamar e isso me causasse mais constrangimentos, eu não contava a ninguém o que sofria na escola. Guardava para mim e focava no que eu realmente gostava de fazer: estudar.
A minha maior tristeza, por incrível que pareça, não eram as ofensas dos meus colegas. O pior era a omissão dos professores. Todos brancos. Nenhum deles me defendia. Nenhum professor advertia os alunos por discriminarem uma colega negra. Nenhum deles me defendia do crime que aqueles alunos cometiam contra mim. Afinal, racismo é crime, não é? Os professores não sabiam disso?
Os anos se passaram e eu fui para a faculdade. De aluna, virei professora. Ensinar era o que queria fazer e eu sempre soube disso. Poucos anos depois de ter me formado em Letras, fui aprovada em um concurso para dar aulas na rede pública de educação da minha cidade. Na escola onde escolhi dar aulas, eu era uma das únicas professoras negras (infelizmente ainda são poucos os professores negros com nível superior no Brasil). Por outro lado, a maioria dos alunos eram negros. Assim que cheguei à escola, soube da importância que eu teria na vida daqueles meninos e meninas negros. Ser negro e ter uma professora negra é muito importante. Isso é representatividade. E representatividade importa. Eu nunca me senti representada na escola, mas meus alunos se sentiriam. Eles saberiam quem são e teriam orgulho de ser quem são.
Ao longo destes 15 anos de magistério, foram muitas realizações, projetos, textos, atividades abordando temas que falam sobre racismo, valorização das pessoas negras, cultura africana, entre outros. Há dois anos, ter passado pela transição capilar e assumido os meus cachos me aproximou ainda mais das minhas alunas negras, que também estão vivendo essa fase de aceitação de quem são. Se professores são espelhos para os alunos, imagine uma professora da cor das suas alunas, exibindo seu cabelo natural e sem a menor vergonha de ser quem é!
Na minha sala de aula, aprendemos interpretação de texto, gramática e produção textual. Mas mais que isso: aprendemos sobre respeito, empatia, solidariedade e autoestima. Professora negra, presente!