Em 23/10, sexta-feira, cinco dias depois de realizadas as eleições na Bolívia, Luis Arce, do partido Movimento ao Socialismo (MAS), foi oficialmente considerado o presidente eleito. Ele obteve 55,1% dos votos enquanto o segundo colocado, Carlos Mesa, do partido Comunidade Cidadã (CC), reuniu 28,83%. Luis Fernando Camacho, da Unidade Cívica Solidária (UCS), conhecido como “o Bolsonaro boliviano”, ficou em terceiro lugar, com 14% dos votos. Ao longo da semana, lideranças internas e externas foram, aos poucos, reconhecendo o resultado das urnas. Inclusive a Organização dos Estados Americanos (OEA), que denunciou fraude no mesmo pleito, realizado um ano atrás, quando Evo Morales, também do MAS, foi eleito presidente pela quarta vez.
Gisele Ricobom, professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) e atualmente em cooperação técnica com a UFRJ, classificou o resultado das urnas como “acachapante”. Para ela, com a vitória de Arce, a Bolívia mostra a toda a região que é possível a população de um país retomar o poder pelo voto. Em outubro de 2019, após a denúncia da OEA e uma insurgência nas ruas, Morales se exilou na Argentina e a senadora Jeanine Áñez, do partido Movimento Democrático Social (MDS), se autoproclamou presidente da Bolívia. Novas eleições foram marcadas para maio, mas, por causa da pandemia da COVID-19, tiveram de ser remarcadas.
Economista, professor universitário, oriundo da classe média boliviana, Arce foi ministro de Economia e Finanças dos governos Morales (entre 2006 e 2019) e usou como mote de campanha o “boom desenvolvimentista” vivido no país enquanto esteve ao lado de Evo. Como Ricobom explica, foi o período em que a Bolívia conseguiu reduzir a pobreza. Seu perfil “técnico”, por um lado, apazigua a tensão provocada nos setores mais conservadores, por outro, deixa em alerta os movimentos sociais, que já vinham criticando o governo do MAS, denunciando o avanço das máquinas sobre o meio ambiente e o desrespeito aos territórios indígenas. Por isso, o vice David Choquehuanca, liderança de origem aimará e um dos fundadores do MAS, promete atuar de forma a corrigir alguns rumos. “Será outro governo”, defende Ricobom, que é pesquisadora de temas como direitos humanos e democracia. Confira, a seguir, a íntegra da entrevista que ela nos concedeu.
Conexão UFRJ – O que o resultado das eleições bolivianas diz para o próprio país e para a América Latina?
Gisele Ricobom – A vitória de Luis Arce é inquestionável e representa uma conquista acachapante do povo boliviano, que pode agora retomar a esperança de um país novamente soberano – especialmente em função do golpe que sofreu no ano passado, em outubro de 2019, levado a cabo pela própria OEA. A vitória já foi reconhecida por Jeanine Áñez, que assumiu temporariamente o país, por Carlos Mesa, o segundo colocado, e pelo próprio Luis Almagro, secretário-geral da OEA [a professora concedeu esta entrevista antes de ser encerrado o processo eleitoral]. A ascensão do MAS, com a liderança de Evo Morales, representou a conquista da soberania boliviana.
Houve, por exemplo, a refundação do Estado por meio de um novo constitucionalismo que privilegiou valores e a própria cultura indígena, transformando a Bolívia em um Estado diverso e justo com a base cultural da sua população. Também foram renacionalizados setores importantes da economia boliviana, como o de hidrocarbonetos. Foi o governo responsável pelo boom de desenvolvimento do país, conseguindo estabilizar a economia e reduzir a pobreza.
E Luis Arce estava nos governos de Evo Morales como ministro da Economia. Grande parte dos frutos desse progressismo, especialmente na área econômica, se deve ao tecnicismo do então ministro, que agora assume o poder. Portanto, há uma esperança renovada de que se retomará a soberania nacional. É uma soberania que está pautada nos recursos naturais, na defesa do meio ambiente, na nacionalização e estatização, de fato, dos setores importantes para a vida cotidiana da população boliviana. Isso vai ter impactos, sem dúvida nenhuma, em toda a América Latina.
Conexão UFRJ – Que reações podem surgir a partir dessa configuração política, dentro e fora da Bolívia?
Gisele Ricobom – Diante do contexto vivido no mundo, principalmente na região latino-americana, de retomada do conservadorismo, uma das reações esperadas é um nível de tensão com essa vitória. Os conservadores não fizeram um golpe por pouca razão. O golpe de 2019 foi promovido por essa linha de políticos que está absolutamente subserviente às relações de poder externas e especialmente alinhadas ao governo conservador dos Estados Unidos. Então, dentro da Bolívia, o que se espera é o respeito ao processo eleitoral, uma retomada e um aprofundamento do Estado plurinacional que estava sendo levado a cabo pelo governo de Evo Morales.
É claro, também, que será preciso uma correção dos rumos. Esse é um novo governo. Claro que Evo Morales tem papel fundamental na história recente do país, mas há que se fazer uma correção de rumos para o aprofundamento do Estado plurinacional.
Essa constituição, que estava sob risco com governos ditatoriais, agora pode ser retomada com todo o vigor e toda a importância que ela tem dentro de um governo que reconhece, sabe e participou desse processo de transformação social na Bolívia. Fora da Bolívia, o que se espera é que essa conquista do povo também traga ventos favoráveis e libertários para o Equador, para o Brasil, para países que estão passando por processos de aprofundamento das tensões políticas. Espera-se, portanto, que em um determinado momento essa vitória represente, em eleições futuras pelas quais os países da região passarão, uma recuperação da esperança popular. Há espaço para que o povo retome novamente o poder. Outro ponto fundamental é a integração dos países latino-americanos. É preciso uma integração solidária, menos Prosul [Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul, criado em 2019], mais Unasul [União das Nações Sul-Americanas, criada em 2008] e Celac [Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, criada em 2010].
Conexão UFRJ – Por que devemos olhar para a Bolívia?
Gisele Ricobom – A Bolívia mostrou que é possível ter uma eleição que retome os interesses da população mais vulnerável, a população que constitui a maioria do país. Também pudemos observar a queda do nível de abstenção nas urnas, na Bolívia e nos Estados Unidos, algo que marcou muito eleições passadas. Isso é muito favorável. O recrudescimento de governos conservadores faz com que a população contrária à intolerância, ao desrespeito, à arrogância, à imposição de valores culturais e religiosos reaja.
Então a Bolívia demonstra que houve uma reação popular nas urnas que resgatou o processo histórico democrático no país contra um governo que se impôs pela força, pela intolerância, por meio de valores que não representam em absoluto a maioria da população boliviana.
Mostra também que Bolsonaro é “pé-frio”. Ele defendia o candidato Luis Fernando Camacho, tido como “o Bolsonaro boliviano”, que ficou muito atrás na corrida presidencial. Também apoiou Mauricio Macri na Argentina, em 2019, e perdeu. Agora, tudo indica que esse apoio fortemente afetivo que o governo Bolsonaro tem ao Donald Trump também trará resultados negativos para os Estados Unidos. Além de ser “pé-frio”, Bolsonaro tem sofrido derrotas imensas e muito importantes para o Brasil. Isso pode se refletir aqui. Nos traz a esperança de que, nas próximas eleições, haverá o mesmo movimento da população brasileira, que é o movimento de participação, de comparecimento às urnas, em razão até de uma reação profunda a esse governo de opressão que temos no Brasil. Um governo genocida que não adotou as medidas para conter a pandemia, que só enfraqueceu o Estado brasileiro, deixou a economia em frangalhos e, mais do que tudo, representa um governo misógino, racista, intolerante, fundamentalista que precisa, de fato, de uma reação popular.
Olhar para a Bolívia, portanto, é absolutamente importante não só pela parceria que o país tem com o Brasil, a importância que tem na integração sul-americana, nas relações bilaterais com o Brasil. Isso significa também olhar para a Bolívia com especial atenção, em razão da política externa brasileira, mas, especialmente, em função de um processo que pode ser replicado aqui também. Um processo de renovação, de esperança, que devolva a soberania para a maioria da população brasileira.