Categorias
Sociedade

Conhecer aquilo que não é espelho

Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência marca importantes avanços, mas evidencia que o país está longe da inclusão

Em 21 de setembro comemora-se o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência. A data – reivindicada desde 1982 graças ao grande esforço de movimentos sociais, mas só legalmente oficializada 23 anos depois, em 2005 – marca as tentativas de garantir a participação, em igualdade de condições, das pessoas com deficiência na sociedade. No mesmo mês, convencionou-se também celebrar o Setembro Verde, mês da inclusão social. Mas o que a sociedade brasileira tem a comemorar nesta data?

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no país há cerca de 45,6 milhões de pessoas com deficiência, quase 24% da população (segundo a nova margem de corte do Instituto, no entanto, esse número alcançaria 12,7 milhões de brasileiros, pouco mais de 6%). Em contrapartida, poucos são os dados que mostram a participação plena desse grupo na sociedade. No mercado de trabalho formal, por exemplo, estima-se que pessoas com deficiência respondam por apenas 456 mil do total de carteiras assinadas no país (aproximadamente 1%), de acordo com a última Relação Anual de Informações Sociais (Raiss), divulgada em 2019 pelo Ministério da Economia.

Para Izabel Loureiro Maior, médica, professora aposentada da UFRJ e liderança histórica há mais de 30 anos do Movimento das Pessoas com Deficiência, vivemos em uma cultura que tem na característica do desconhecimento do outro um forte traço.

“Infelizmente, nem sempre as pessoas estão dispostas a conhecer aquilo que não é espelho. A diferença nem sempre é valorizada”, diz, fazendo referência à canção Sampa, de Caetano Veloso.

Izabel Loureiro Maior | Foto: Arquivo pessoal

Antes de qualquer coisa, é importante entender que a deficiência não é o aspecto biológico por si só. Não se trata, portanto, de doença, defeito ou alteração – o que concentra na própria pessoa toda a responsabilidade por ter dificuldades. Segundo Izabel, deficiência é um aspecto relacional: de um lado, a pessoa (com deficiência); do outro, a sociedade – em geral, despreparada para recebê-la e tratar sua condição como diferença que faz parte intrínseca da diversidade humana.

Se durante essa interação não se encontram barreiras, pode-se dizer que o mundo é inclusivo, ideal, feito para todas as pessoas. Mas, se essas barreiras existem, é um mundo que exclui, não se prepara, não entende que os direitos humanos são de todos.

“Para mim, deficiência é a soma das oportunidades perdidas, a falta de acessibilidade e não ter liberdade de ser quem sou e sei que poderei ser, por exemplo, em outra cultura que valoriza a igualdade de oportunidades. Obviamente, o preconceito e a discriminação fazem persistir os limites arbitrários”, pontua.

As pessoas vêm antes da deficiência

Hoje, ainda são usuais termos como “excepcional”, “portador de deficiência” e “portador de necessidades especiais”, mesmo em grandes veículos de comunicação, órgãos públicos, empresas, instituições sociais ou na sociedade em geral. As expressões, apesar de anacrônicas e incorretas, ainda persistem.

De acordo com a professora, evoluiu-se para a noção de que a pessoa tem uma característica permanente: não pode portá-la em alguns momentos e se desfazer dela em outros, o que mostrou a inadequação da terminologia “portadora de deficiência”. Tampouco se convencionou utilizar “necessidades especiais”, “excepcional” ou quaisquer variações oriundas dessas expressões. O termo mais adequado, definido pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, é pessoa com deficiência.

Entretanto, Izabel ressalta que não é suficiente ser reconhecida como pessoa com deficiência e continuar com seus direitos negados ou negligenciados. Muito além da terminologia adequada, a luta é contra a discriminação, a falta de oportunidades e a reiterada posição de discriminar parecendo que não se está discriminando.

“A identidade de um segmento populacional reforça sua capacidade de reação à opressão, portanto é essencial sermos pessoas, acima de tudo”, destaca.

É nesse contexto que vem à tona o conceito de capacitismo: a discriminação sofrida pelas pessoas com deficiência. Apesar de recente, é um termo fundamental em qualquer discussão que parta do ponto de vista emancipatório de que as pessoas com deficiência são socialmente oprimidas.

Izabel lembra situações do próprio cotidiano para exemplificar atitudes capacitistas. Em um shopping, deslocando-se em sua cadeira de rodas, ela é tão invisível que as pessoas frequentemente atropelam sua cadeira. Da mesma forma, ao entrar em uma loja, é mais provável que o lojista pergunte o que a médica deseja a quem a acompanha e está de pé.

“Pense como é desagradável, injusto e revoltante ter de provar que tenho direito de estar ali, de ter autonomia, de fazer minhas escolhas a cada nova situação. A invisibilidade social rouba meu lugar de fala, usurpa o protagonismo e a independência”, observa.

Na mesma linha está a manchete de superação e heroísmo, como por exemplo, “médica com deficiência é a primeira colocada no concurso público”. A pessoa com deficiência precisa, portanto, provar uma imensa capacidade para ser considerada uma pessoa.

“A superação é prima-irmã da invisibilidade. Ambas mostram que a inclusão ainda não predomina, pois não deve ser considerado um feito tão extraordinário uma pessoa com deficiência fazer compras no shopping ou passar em um concurso público”, completa Izabel.

Da exclusão à inclusão: onde estamos?

Historicamente, a opressão contra as pessoas com deficiência se manifesta a partir da restrição de seus direitos. Mas isso vem mudando, sobretudo com o Movimento Social pelos Direitos das Pessoas com Deficiência, que trouxe à tona o lema “Nada sobre nós, sem nós”, que reivindica que nenhum resultado a respeito das pessoas com deficiência haverá de ser gerado sem a plena participação das próprias pessoas com deficiência. Pela primeira vez, elas mesmas protagonizavam suas lutas e buscavam ser agentes da própria história. Contudo, nem sempre foi assim.

Primeiros modelos históricos, a exclusão e a segregação compreendem desde a eliminação da vida da pessoa com deficiência até a sua separação ou isolamento em ambientes à parte dos habitualmente frequentados por indivíduos sem deficiência. Nesse sentido, as pessoas com deficiência eram impedidas de acessar espaços ou realizar atividades cotidianas. Quando muito, eram relegadas a lugares segregados – escolas ou classes específicas.

Segundo Izabel, o modelo da integração representou um grande avanço, pois admitiu  esforços para normalizar as pessoas com deficiência, instrumentalizando-as para conviver nos espaços comuns. “Pode-se estabelecer a correlação entre o modelo médico e a integração. Todavia, as mudanças e melhoramentos eram realizados na pessoa, e não na sociedade e nos ambientes”, esclarece. Dessa forma, a integração se resume a encaixar pessoas com deficiência somente nos espaços em que a sociedade aceitar – que já são cheios de barreiras.

A inclusão, por sua vez, equivale ao modelo social, quando as pessoas são reabilitadas, desenvolvem sua funcionalidade, têm ingresso na educação inclusiva e no trabalho em ambientes inclusivos. “A acessibilidade, a tecnologia assistiva e os apoios necessários entram em cena para garantir direitos e qualidade de vida com participação social”, ressalta a professora. Há uma modificação na própria sociedade, permitindo à pessoa com deficiência seu desenvolvimento e pleno exercício da cidadania.

Para Izabel, o surgimento de um novo modelo histórico não põe em xeque o paradigma anterior. Assim, apesar de tanto se falar em inclusão, em muitas situações ainda é possível identificar em nossa sociedade a predominância da integração ou mesmo da segregação.

“Antes de tudo, devo dizer que esses modelos coexistem hoje na realidade brasileira, sendo atribuição do Movimento Social pelos Direitos das Pessoas com Deficiência exigir que leis e políticas públicas acelerem as mudanças culturais e institucionais para que a inclusão se torne o paradigma dominante.”

A tecnologia e o papel da universidade

A tecnologia representa novas oportunidades para a autonomia, a independência e o bem-estar de pessoas com quaisquer tipos de deficiência – física, mental, intelectual, auditiva, visual ou múltipla. E a universidade tem um papel fundamental ao garantir que produtos ou metodologias sejam capazes de contribuir com soluções para os ambientes, transportes, recursos comunicacionais e ferramentas para a educação inclusiva.

“É preciso desenvolver tecnologia de alta qualidade, patentear, usar as incubadoras de empresas, lembrando que muitas novidades podem ser produzidas em escala e outras precisam atender a customização do cliente em sua especificidade”, completa Izabel.

Inclusão vai muito além de construir rampas ou aplicar pisos táteis; deve-se assegurar a participação plena aos alunos e servidores com deficiência nas atividades universitárias | Foto: Marcello Casal Jr. (Agência Brasil)

No entanto, para a docente, ainda há muitos desafios em relação à inclusão no contexto universitário. É necessário transversalizar o tema dos direitos das pessoas com deficiência na formação dos novos profissionais, de acordo com a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – que tem equivalência constitucional – e a Lei Brasileira de Inclusão (Lei no 13.146/2015), em todas as grades curriculares. É importante garantir que a vida acadêmica reflita atitudes inclusivas e não capacitistas, assegurar a acessibilidade aos alunos e servidores com deficiência, instituir incentivo ao desenvolvimento de ciência e tecnologia e inovação acessíveis nas atividades de ensino, pesquisa e extensão.

Por fim, Izabel destaca como a pandemia causada pelo novo coronavírus levou a sociedade ao distanciamento social e à aproximação virtual, evidenciando ainda mais o despreparo das plataformas, portais e aplicativos acerca dos recursos de acessibilidade comunicacional para aulas, palestras e webnários.

“Legendas de baixa qualidade, internet lenta para transmitir a movimentação dos gestos dos intérpretes de Língua Brasileira de Sinais (Libras), falta de outros recursos necessários que foram deixados de lado são apenas alguns exemplos. O desafio foi lançado e espero que o decantado novo normal traga as respostas inclusivas”, conclui a professora.

Até que, de fato, possamos falar em uma inclusão plena, não só em datas comemorativas ou efemérides, é necessária a conscientização diária de que conhecer e respeitar aquilo que não é espelho é abrir caminhos para uma nova sociedade.


“Quando eu te encarei frente a frente, não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho […]”

— Caetano Veloso, em Sampa, de 1978

Voltar para o topo