Passam de 80 mil os casos confirmados de COVID-19 no país. Com isso, cresce a necessidade de internação dos pacientes graves e a previsão de que o Sistema Único de Saúde (SUS) poderá colapsar em maio vem se confirmando. Nos estados do Amazonas, Ceará, Maranhão e Pernambuco, os hospitais públicos estão com mais de 96% das vagas ocupadas. No Rio de Janeiro, com lotação de 92%, mesmo com a construção e abertura de hospitais de campanha, centenas de pessoas aguardam transferência para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
Solução para esse problema é apresentada pelo Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento na Saúde (GPDES) da UFRJ, que aposta na criação do Sistema Nacional de Vagas para Casos Graves de Coronavírus. Trata-se de um cadastro único para pacientes e leitos, que funcionaria aos moldes do Sistema Nacional de Transplantes e faria o gerenciamento das demandas, contando também com a rede hospitalar privada. Assim, mediante financiamento do estado, pacientes do SUS poderiam ser encaminhados às vagas ociosas dos hospitais particulares.
De acordo com Lígia Bahia, professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (Iesc) da UFRJ e líder do GPDES, a proposta é justa, garante atendimento a todos e padroniza a qualidade e a segurança do serviço prestado. “O que nós temos hoje é um sistema de saúde segmentado entre o público e o privado, entre hospitais melhores e piores, entre unidades de terapia intensiva que são seguras e outras que têm problemas com equipamentos ou equipes profissionais incompletas. Não é bom que os pacientes de COVID-19 sejam tratados diferenciadamente, seria importante que todos tivessem a mesma chance de viver”, declarou.
De acordo com a docente, o Sistema Nacional de Vagas poderia diminuir o tempo de espera nas enfermarias e salvar vidas. “Há um represamento de pacientes nas unidades básicas de saúde e isso não é desejável. Os pacientes precisam chegar rapidamente a uma unidade de terapia intensiva, e isso, se não ocorrer, retirará a chance do paciente de ter um tratamento adequado”, alertou.
A “fila única de leitos”, como vem sendo chamado o sistema de vagas que se pretende implementar, é realidade em países como Espanha, Irlanda, Itália e Austrália. “São experiências consolidadas que funcionam por meio da combinação de critérios, como a gravidade das condições clínicas dos pacientes, a distância das unidades de saúde etc. Nesse caso, também teríamos de incluir o critério dos contratos de plano de saúde, caso as pessoas tenham, para não causar problemas para o SUS”, observou Lígia.
Disparidade e concentração
Dois modelos de saúde coexistem no Brasil: o público, materializado pelo SUS, e o privado, regulado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Todo cidadão brasileiro tem acesso ao primeiro e somente 47 milhões de pessoas – ou 25% da população – conseguem assistência no segundo. Em razão da pandemia, o GPDES, em parceria com o Grupo de Estudos sobre Plano de Saúde (GEPS) da Universidade de São Paulo (USP), produziu nota técnica avaliando o desempenho da ANS e sugerindo maior envolvimento do setor privado com o interesse coletivo. A ANS ainda não se manifestou.
A questão é que a saúde suplementar, que reúne 916 empresas (14 delas controlando 40% da clientela) e tem 70% de seu público residindo no Sudeste, possui mais estrutura, mais profissionais e mais dinheiro. Somente em 2019, clínicas e hospitais particulares, bem como planos e seguros de saúde, movimentaram cerca de R$ 213 bilhões.
Em relação aos leitos de terapia intensiva, o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) indica a existência de 59.695 em todo o território nacional. Desses, 32.016 estariam disponíveis aos pacientes do SUS, o que corresponde a 1,51 leito por 10 mil habitantes. “Apenas parte da capacidade instalada hospitalar está disponível para o atendimento universal, já que 31% dos leitos são destinados ao atendimento de clientes de planos de saúde e particulares. A segmentação da oferta de leitos é peculiar porque, na rede SUS, 21,5% dos leitos são de natureza privada e 64% são filantrópicos. Ou seja, um mesmo hospital pode, no Brasil, vincular-se simultaneamente ao SUS e aos planos privados”, diz a nota técnica assinada pela UFRJ e USP.
A forma como o sistema de saúde opera gera a disparidade, tanto entre os setores público e privado quanto entre estados e municípios. A oferta se dá de acordo com a possibilidade de captação de recursos, e isso faz com que, mesmo atendendo a uma parcela menor da população, a saúde suplementar registre de duas a três vezes mais internações do que o SUS. “Em 2018 foram realizadas 171,6 internações para cada 1.000 clientes de planos de saúde e 73 para cada 1.000 pacientes assistidos pelo SUS”, continua o texto.
Pesquisas recentes, projetando cenários diante da COVID-19, apresentam outros números para comprovar o mesmo acirramento. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apurou que, para cada leito do SUS, há cerca de quatro particulares. Isto é, enquanto o SUS disponibiliza a média de 13,6 leitos por 100 mil habitantes, a saúde suplementar oferece 62,6 por 100 mil segurados.
Levantamento feito pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps) chegou a uma relação ainda mais baixa: 7,1 leitos de UTI por 100 mil habitantes no SUS. Essa quantidade estaria abaixo do mínimo permitido pelo próprio Ministério da Saúde (MS), que é de 10/100 mil. A pesquisa reconheceu, assim, que 53% do território nacional deveriam, no mínimo, dobrar sua capacidade atual para não sucumbir ainda no início da pandemia.
Para Lígia Bahia, o quadro é grave e as mudanças necessárias podem não acontecer. “A proposta [da fila única] é correta, mas não necessariamente é factível neste momento. No Brasil, temos um padrão de desigualdade que é muito estruturante e, infelizmente, apesar de toda a solidariedade, dos esforços que temos feito, é um padrão que permite que os hospitais privados se neguem a participar dos esforços coletivos. O que os hospitais estão fazendo é doar recursos, que são irrisórios, para que não participem de uma central única de regulação de vagas”, criticou.
Outras articulações
Na última semana, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) recomendou ao Ministério da Saúde e aos gestores municipais e estaduais a adoção da fila única de leitos. A mesma reivindicação foi feita por profissionais de saúde, que, em 6/4, publicaram o manifesto Leitos para Todos. Nos dois casos foram ressaltadas as disparidades do sistema de saúde brasileiro, destacando-se a situação de calamidade pública, reconhecida por decreto em 20/3.
O Sistema Nacional de Vagas tem respaldo legal na Constituição Federal e na Lei Orgânica da Saúde (n° 8.080/1990), que preveem o acesso universal aos serviços, e na recente Lei n° 13.979/2020, que dispõe sobre a urgência das medidas de enfrentamento da COVID-19. No Rio de Janeiro, dois projetos de lei tramitam, respectivamente, na Câmara Municipal e na Assembleia Legislativa, propondo a regulação da fila única de leitos.
De acordo com o deputado Flávio Serafini (PSOL-RJ), autor do projeto em âmbito estadual, a ação seria complementar à criação de hospitais de campanha, para conseguir atender a todos os pacientes que necessitam de internação. “Existe uma pressão muito grande por vagas de terapia intensiva na rede pública e o governo não está conseguindo abrir muitos novos leitos porque faltam equipamentos, principalmente respiradores. Por outro lado, a rede privada tem leitos já equipados, com profissionais à disposição e que estão ociosos. Então, a ideia da fila única é expandir a quantidade de leitos que o governo terá ao seu alcance. Até porque o período de internação pela COVID-19 é mais longo do que de pneumonia e outras síndromes respiratórias. A pessoa fica duas semanas, às vezes até mais”, afirmou.
Segundo o deputado, o governo do estado já tem comprado leitos da iniciativa privada e, portanto, os valores estão estabelecidos. “Se respeitaria o preço do mercado e poderia ter essa gestão. O que a gente quer é colocar as vidas em primeiro lugar”, defendeu. O projeto foi considerado urgente pela Alerj, mas ainda não entrou na pauta de votações.