A pandemia provocada pela disseminação do novo coronavírus vem exigindo que o mundo pare. As consequências econômicas disso são, por enquanto, de difícil mensuração, mas já podem ser sentidas: da desaceleração da produção à redução nas exportações; dos prejuízos do comércio e do setor de serviços ao endividamento da população; das oscilações especulativas do sistema financeiro à eventual fuga de investidores do país. O que está acontecendo e como podemos enfrentar mais uma crise?
Nossa reportagem conversou com Carlos Pinkusfeld Bastos, professor do Instituto de Economia (IE) da UFRJ, que comentou alguns aspectos da conjuntura econômica e destacou o que considera mais importante no momento: retomar os gastos públicos. Pinkusfeld foi um dos 75 pesquisadores a assinar uma carta aberta à população, avaliando a situação do país em tempos de pandemia.
Economia real
A COVID-19, doença provocada pelo novo coronavírus, foi detectada na China em 31/12/2019. Em 23/1/2020, tiveram início no país medidas de restrições de deslocamento, consideradas necessárias para conter a disseminação do vírus. Imediatamente, a segunda economia do mundo teve as portas fechadas em setores da indústria, comércio e serviços, o que comprometeu, por exemplo, negócios que giram em torno do turismo, da aviação, da produção automotiva ou de eletrônicos, da comercialização de óleo e gás etc. Em fevereiro, Europa e Estados Unidos também desaceleraram sua atividade econômica em virtude do espraiamento da doença. “Agora a paralisação é quase total, os impactos econômicos serão imensos e, ainda assim, como não sabemos o tempo que a quarentena vai durar, quaisquer previsões não passam de estimativas extremamente precárias”, avaliou o professor.
De qualquer forma, os componentes externos prejudicam a economia brasileira em dois sentidos. Primeiro, nas relações comerciais com outros países, uma vez que o Brasil vende soja, celulose, café, carnes de frango e bovina, açúcar bruto, óleo bruto, minério de ferro, entre outros produtos, para Ásia, Estados Unidos e Europa. Com a baixa demanda, caem as vendas e os preços das commodities. Não acompanham essa queda os preços de peças para a produção industrial, interconectada em todo o mundo, e esse pode ser o segundo efeito da crise gerada pela COVID-19. “É preciso avaliar até que ponto essas paradas mundiais afetarão as cadeias de valor. Sem dúvida que esses impactos serão pesadíssimos”, comentou Pinkusfeld. “A China já está voltando a produzir, tem uma economia centralmente coordenada, o que permite que ocorra uma resposta mais rápida e eficiente à queda da produção. Mas agora quem está parando é Europa e os Estados Unidos”, reforçou.
É bom ressaltar, no entanto, que a economia brasileira já não ia bem antes mesmo da disseminação do novo coronavírus. “As exportações já estavam ruins, a construção civil teve um gás, mas não foi suficiente para retomar o crescimento. Já havia muito exagero nesse cenário glorioso que as pessoas imaginavam”, refletiu o professor. O Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, conforme anunciou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 4/3, fechou em R$ 7,3 trilhões, e isso representou um crescimento de 1,1% em relação a 2018. Para Pinkusfeld, é como se tivéssemos voltado ao ano de 2012: “Crescendo essa taxa de 1% ao ano, vamos alcançar o PIB per capita da pré-crise em 2027. Com a provável recessão de 2020, a manutenção dessas taxas baixas de crescimento, algo em torno de 1%, 1,5%, adia nosso retorno ao patamar de renda per capita de 2014 para um horizonte ainda mais distante”.
Sistema nervoso
Um terceiro impacto da crise gerada pelo novo coronavírus e pela necessidade de fechamento de espaços de produção e circulação no sistema financeiro é sentido no sistema financeiro, que reage diante das possibilidades de perda de riquezas. Para nosso entrevistado, contudo, esse é um efeito, apesar de mais espetacular principalmente nas rápidas oscilações das bolsas de valores, remediável. “A queda brusca de valor das carteiras de ativo privadas que poderiam gerar um ‘efeito dominó’ sobre o sistema bancário certamente será contornada por políticas de fornecimento de liquidez pelos bancos centrais”, explicou.
Pinkusfeld citou a crise de 2008 para lembrar que, desta vez, os governos já sabem e estão prontos a intervir. “Do ponto de vista da saúde financeira do mundo, os bancos centrais vão cuidar para que não haja um grande drama”, tranquilizou. “Em 2008 o FED [sistema de reserva federal dos Estados Unidos] comprou trilhões em títulos dos bancos para evitar uma crise generalizada do sistema financeiro, o que travaria toda a atividade produtiva. As medidas que já foram anunciadas pelo FED e Banco Central Europeu apontam na direção de atuação forte e eficiente nesse front”, comparou.
A mão do Estado
Esse é apenas um primeiro passo. “Uma coisa é a emergência que quase sempre é financeira: não deixar que a perda de valor das empresas, ou de sua liquidez, impacte o sistema financeiro. Entretanto, se esse é um passo importante para a preservação do sistema financeiro, e mesmo a liquidez das empresas, o componente central na sustentação do gasto, da produção e própria sobrevivência das pessoas só poderá vir de uma fonte: o Estado”, destacou Pinkusfeld.
De acordo com o pesquisador, em tempos de crise, o Estado deve intervir em três níveis: no sistema financeiro, no setor produtivo e na área social. “O primeiro talvez seja o mais ‘fácil’ e já está sendo tratado no Brasil e no mundo”, pontuou. O segundo e o terceiro ainda recebem tratamento insuficiente por parte do governo. E ainda que um decreto legislativo tenha reconhecido a situação de calamidade pública no país, autorizando o Estado a gastar mais do que o previsto na legislação orçamentária, o momento exige mais. “O que foi feito até agora está longe do padrão internacional. Levantamento realizado pelo IBRE/FGV [Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas] mostra que o Brasil, em termos de gasto direto para superação da crise até hoje, propôs um gasto de 2,9% do Produto Interno Bruto enquanto os Estados Unidos já chegaram a 11% e os países da Europa têm uma média de 15%. Medidas recentes anunciadas pela Alemanha apontam que o gasto público para enfrentar a crise pode chegar a 30% do PIB”, apresentou.
Na semana passada, Maurício Metri e Eduardo Crespo, docentes do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (Irid) da UFRJ, que integram o Grupo de Trabalho Multidisciplinar para Enfrentamento da COVID-19, produziram um documento listando a necessidade de aporte de recursos para a saúde, além de urgentes medidas de transferência de renda para trabalhadores, assistência direta de bens e serviços para grupos vulneráveis e redução temporária de impostos para pequenas empresas. “Além de fornecer poder de compra à população, liquidez para as empresas e solvência ao sistema financeiro, seria importante atuar ativamente na reestruturação produtiva, auxiliando na reordenação temporária de linhas produtivas com foco específico na produção de bens e insumos essenciais para o combate da pandemia. Caberia também ao Estado garantir os fluxos de alimentos e bens de necessidade básica à população”, reforçou Pinkusfeld.
Segundo o professor, o quadro reflete uma face preocupante da conjuntura brasileira, que se revela quando o Ministério da Economia insiste na aprovação de reformas estruturais – como a administrativa e do pacto federativo – em pleno momento de crise. “Como se trata de um problema conjuntural, a proposta vinda da Esplanada torna-se esquizofrênica. Como uma reforma que teria efeitos em longo prazo vai nos tirar de uma crise imediata? Isso não é sério. Está na contramão do que o mundo discute hoje. Temos uma crise circunstancial que terá de ser combatida por elementos conjunturais, como os que já mencionamos. Adiar tais medidas e recorrer ao argumento do exagero ou da histeria é transformar uma crise já gravíssima num desastre social e econômico.”