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Fórum de Ciência e Cultura discute novas possibilidades de viver

Ailton Krenak e Suely Rolnik foram convidados para a conversa. Mais de 500 pessoas compareceram

Diante de um quadro preocupante, em que setores como meio ambiente, educação e cultura vêm sendo regularmente atacados, é preciso pensar em novas formas de interpretar o mundo e estar nele. Modos de existência que nos permitam resistir, encarar e transformar os perigos de nosso tempo, em potência para a construção de mundos outros, plurais, diversos, em constante movimento e reformulação. Com essa premissa, o Fórum de Ciência e Cultura (FCC) recebeu, na quinta-feira (10/10), dois importantes pensadores da questão para uma conversa: Ailton Krenak e Suely Rolnik. Mais de 500 pessoas compareceram. O evento, intitulado Constelações Insurgentes, contou com o lançamento de livros de Krenak e Rolnik e com uma sessão de autógrafos.A mediação foi feita por Tatiana Roque, coordenadora do FCC, que deixou clara a intenção de tornar o Fórum um espaço estratégico de pensamento e cultura, de modo a acolher as pautas que vêm sendo perseguidas pelo governo atual.  “[Na universidade] A gente ainda tem muita riqueza, espaços, pessoas, pesquisas, sobretudo o pensamento e a liberdade de pensamento nesse momento em que, cada vez mais, parece difícil até pensar. Nosso tema não poderia ser mais oportuno”, declarou.

“Este Fórum já constitui um espaço muito importante porque proporciona esses tipos de comunidades temporárias, que a gente pode experimentar”, destacou Ailton Krenak, um dos principais líderes indígenas do país, que é também escritor e doutor honoris causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Mais de 500 pessoas acompanharam a conversa

Capitalismo, cultura e natureza

Com uma fala contundente, Ailton questionou o modelo de sociedade atual cada vez mais arriscado, sugerindo repensar ideias como as de natureza, educação, sustentabilidade, subjetividade e a do próprio capitalismo. “Eu fico admirado que alguns de nós ainda cometam o equívoco de mandar seus netinhos para a escola.” Segundo ele, o modelo educacional considerado “civilizatório” induz as crianças à reprodução “dessa barbárie na qual estamos metidos com nome de civilização. A criança vai ser profundamente influenciada por escolhas antigas e vai atualizar isso para frente, como vítima inocente da cafetinagem capitalista”.

“A história dos regionalismos já deu. Continuar alimentando esse tipo de organização da sociedade, dando sustentação a essa reprodução capitalista numa região periférica no mundo, não dá pé. A denúncia disso é a própria sequência de desastres que vamos produzindo, um em cima do outro”, lembrou.

O indígena afirmou que a noção de “natureza”, forjada no século passado, faz parte de uma abstração civilizatória que nega a diversidade e a pluralidade das diferentes formas de vida. “O próprio pensamento ambientalista do século XXI continua reproduzindo a mesma metáfora de natureza, como se não se tocassem que esse caminho tem causado dano, prejuízo e destruição das paisagens, onde as nossas vidas se abrigam, onde as nossas vidas se realizam como projetos criativos. Se essas paisagens forem liquidadas, nós vamos ficar olhando navios na beira de um rio morto ou de alguma floresta calcinada”, alertou Krenak. O nome faz referência à sua tribo, localizada às margens do Rio Doce, atingido pelos rejeitos da barragem da Samarco, em 2015.

Conforme a frase que dá título ao seu livro mais recente (São Paulo: Companhia das Letras, 2019), o pensador propõe Ideias para adiar o fim do mundo a partir do rompimento com a perspectiva racionalista e insustentável predominante na cultura global. “Por que vamos continuar repetindo os valores de uma humanidade vasta que deu errado? Muitas pessoas estão formando opinião e interagindo no mundo, mas não têm coragem de sair desse lugar de reprodução do pensamento racional, linear e calculado, que é a lógica dos brancos”, afirmou. “Chega de mesmice e dessa óbvia necessidade de ter certeza das coisas e um medo enorme de habitar a incerteza.”

Tatiana Roque, Ailton Krenak e Suely Rolnik

Ao analisar a figura do “homem branco”, Ailton identifica um modo de vida insustentável, sendo “impossível que dentro dele se produza sustentabilidade”. Um modelo marcado por uma mentalidade desconectada, sem nenhuma vinculação com o lugar de origem, com os espaços e experiências que compartilhamos como espécie. “Essa civilização reproduz, de maneira cada vez mais acelerada, um mundo em que as pessoas não precisam decidir mais nada. O inconsciente já está dominado por desejos, necessidades inventadas e outras pirações, não inspirações. Se a gente tem uma sociedade que está rodando uma esfera em torno de si mesma e que não consegue criar outras perspectivas de mundo, é porque a subjetividade das pessoas, que é o único canteiro de produção de mundos, está esgotada.”

Deixar-se afetar

E que subjetividade é essa que nos faz permanecer nesse estado atual de aparente colapso? Segundo Suely Rolnik, psicanalista, escritora, crítica de arte e professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), trata-se de um modelo fundado no momento em que os europeus encontraram os povos originários, marcado por uma relação de blindagem ao contato subjetivo com o outro. “O outro é um campo de forças que nos afeta, que nos fecunda e produz em nós um embrião de futuro. Esse outro não tinha existência nenhuma a não ser como objeto a serviço da cafetinagem. O extrativismo não é só das terras e da força vital sob forma de trabalho; é extrativismo da própria vida. Se funda num tipo de subjetividade reduzida à nossa experiência sociocultural e totalmente blindada para nossa experiência como vivente”, observou. Como alternativa, a autora sustenta  a necessidade de abertura afetiva ao outro: permitir-se ser fecundado pelo outro, para que se produzam, a partir dos atravessamentos, outros mundos.

É o que Rolnik explica em seu novo livro, Esferas da Insurreição (São Paulo, N-1 Edições, 2018). Para a autora, a vida se constitui, por princípio, num processo constante de criação e transfiguração, marcado por uma desestabilização também constante. “Um grito de que nossa vida está dando, de que desse jeito não dá e que já tem algo habitando nosso corpo e que precisa germinar. Se eu consigo me sustentar nessa fragilidade, o desejo vai buscar conexões e fecundações que vão permitir que essa germinação se dê. E ela vai se dar criando um corpo que está pedindo passagem, que pode ser uma obra de arte, conceito teórico, uma outra forma de sexualidade, outro modo de vida. Isso tem uma potência de reverberação nos outros corpos que estão atravessados pelas mesmas forças e isso tem um poder de proliferação”, explica.

Evento contou com transmissão ao vivo

No sentido oposto a essa subjetividade insurgente, Rolnik localiza aquela que seria a sua configuração “ocidental, moderna, racional, colonial e racializante”, exposta na ascensão do conservadorismo político atual. Nesse caso, ao encontro da desestabilização, produz-se a sensação de angústia do sujeito diante de uma ameaça desagregadora, resultando no que a autora chama de “micropolítica reativa”, uma recusa ao outro. “Esse tipo de subjetividade e de política do desejo reativo se funda com o capitalismo e a escravidão e está presente até hoje. Toda a minha ação vai na direção da manutenção do status quo para eu lidar com essa ideia inadequada de que ‘o’ mundo está caindo e não ‘um’ mundo. Enquanto que, se eu deixo que esse processo de criação se dê, pode ser criado um outro mundo.”

Na visão da pensadora, estaria ocorrendo uma resistência para além do plano tradicional da macropolítica. “É a primeira vez que está se operando uma mudança irreversível desse tipo de subjetividade reativa, principalmente nos movimentos indígenas, negros e no campo da sexualidade.” Ela explica que não se trata, por exemplo, de criar novos modelos de sexualidade. “Estamos livrando a sexualidade de um modelo único, permitindo que se germinem infinitas formas de sexualidade tendo como critério o destino ético da vida, que é o perseverar da vida. Por mais terrível que seja aquilo que estamos vivendo, também é muito alentador notar que, pela primeira vez, está se operando um verdadeiro desvio desse modo de sujeito. Cabe a nós decifrar isso da melhor maneira possível e poder levar isso às últimas consequências. Isso é completamente irreversível, não tem volta.”

Perdeu o evento? Ainda dá tempo de assistir. A conversa completa está disponível no YouTube. Clique aqui e confira.