Uma prova incomum da força da UFRJ no momento mais traumático da sua história. Assim pode ser definida a plenária aberta que comemorou em frente ao Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, em 6/9, os 98 anos da Universidade. O incêndio no prédio histórico dizimou boa parte do acervo do Museu, mas não abalou a energia vital que fez da UFRJ o que é: uma das mais destacadas instituições acadêmicas da América Latina e do mundo.
Com a presença de estudantes, docentes, técnicos-administrativos, decanos, diretores, reitores de outras universidades e representantes de entidades estudantis e sindicais, o ato institucional foi uma injeção de ânimo na comunidade universitária após a tormenta e mostrou que a reconstrução da mais antiga instituição científica do país, uma referência mundial em ensino e pesquisa de excelência, é uma questão de tempo.
Um dos pontos altos foi o discurso de Crenivaldo Regis Veloso Júnior, historiador do Setor de Etnologia e um dos representante dos técnicos-administrativos do Museu Nacional. Aclamado pela plenária, exigiu “respeito ao luto” da instituição aos que hoje atacam o Museu e a UFRJ.
“Se podemos nos considerar guerreiros e guerreiras é porque a nossa instituição está em guerra há 200 anos. Não é de hoje que os altos escalões silenciam sobre problemas de manutenção e de falta de espaço e de pessoal”, ressaltou.
Veloso acrescentou que o Museu Nacional está vivo e tem tarefas a cumprir. “Vamos refazer as nossas coleções, temos uma agenda de trabalho. E se preparem, porque vai ter muita luta”, garantiu.
Representando os docentes do Museu, Rita Scheel-Ybert, professora do Setor de Arqueologia, também se emocionou ao lembrar que é “cria da UFRJ”. Ela não se conforma com o fato de a mídia apresentar o Museu como uma casa do passado. “Aqui olhamos para frente. Estamos construindo o futuro a partir do conhecimento do passado. Acumulamos conhecimento para construir um futuro melhor para todos”, salientou.
Ela disse ainda que o Museu resiste e, com luta e perseverança, será reconstruído como instituição de pesquisa, docência e extensão.
Universidade mostra altivez e coragem
Em sua fala de abertura, o reitor da UFRJ, Roberto Leher, deu o tom do espírito que dominaria a plenária ao lembrarxa0que a Minerva é a deusa do conhecimento, das artes e da indústria, mas também da guerra. “Ela materializa a história do Museu Nacional e da UFRJ. Nos próximos anos, esse momento vai ser lembrado como um momento de altivez, coragem, solidariedade e capacidade inventiva e de reconstrução das coisas”, disse.
Para Leher, após o incêndio, abriu-se uma ofensiva em larga escala na grande mídia, não contra o reitor ou o diretor do Museu, mas contra a universidade pública. Com uma proposição construída a priori e à revelia dos fatos, a narrativa pretende sugerir que o Museu Nacional e a própria universidade são incapazes de gerir a si próprios e, portanto, precisam ser administrados por organizações privadas.
O reitor refutou essa tese ao sublinhar que o Museu não é simplesmente um espaço que guarda objetos interessantes. Cada peça do acervo é objeto de pesquisas que produzem conhecimento e forjam a imagem do Brasil. “Não podemos admitir, portanto, o conceito de que um espaço museal possa se converter numa organização estruturada com uma racionalidade mercantil”, salientou.
O Museu é um espaço acadêmico e a UFRJ, segundo Leher, vai perseverar na estratégia não apenas de recriá-lo, mas de conjugar a memória dos seus 200 anos com aquilo que sempre moveu a instituição: um projeto de futuro para o país.
Um apelo em defesa da ciência e da cultura
Alexander Kellner, diretor do Museu Nacional, enfatizou que o momento é de união de todos os segmentos da Universidade para a reconstrução “desse pedaço da UFRJ, que é o Museu Nacional”.
Kellner criticou a disseminação de números falsos sobre o orçamento da Universidade e o debate extemporâneo sobre o modelo de gestão. “O que queremos é discutir a reconstrução de um bem da nação que faz parte da gênese do nosso país”, frisou.
Além de lembrar as pessoas que passaram pelo Museu e dedicaram as suas vidas ao desenvolvimento da ciência e da cultura do país, Kellner também destacou o sentimento de pertencimento da população em relação ao Museu. “Há um anseio grande de ajudar [na reconstrução] e quem quiser pode consultar o nosso site para saber as diferentes maneiras de colaborar.”
Ele fez ainda um apelo pela união em torno da reconstrução do Museu Nacional e em defesa da ciência e da cultura do país.
“Lembrar e pensar são vistos como ameaça”
Integrante da mesa da plenária, o professor Carlos Vainer, coordenador do Fórum de Ciência e Cultura (FCC) da UFRJ, recordou a origem etimológica das palavras “museu” e “nacional”. A primeira se refere à Musa e tem em sua origem, segundo ele, duas ideias fundamentais: lembrar e pensar.
Para o dirigente, tanto lembrar como pensar são permanentes ameaças àqueles que, na verdade, querem esquecer e apagar toda a história do nosso povo. “E essa plenária comemorativa expressa um pacto que une a UFRJ, as universidades públicas e a sociedade para afirmar que queremos continuar lembrando e pensando”, disse.
E a segunda palavra – “nacional” – significa, segundo Vainer, que o Museu é uma casa da nação, embora para alguns esse conceito seja anacrônico. “Eles acham que o Museu não serve para nada, que é apenas um supermercado de objetos exóticos e curiosos.”
O coordenador do FCC acrescentou que a construção e a reconstrução permanente da nossa memória é condição indispensável para um futuro que não seja a repetição do que somos hoje.
A solidariedade da Andifes
Reinaldo Centoducatti, presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), expressou solidariedade à UFRJ em nome de todas as universidades federais do Brasil. Centoducatti disse que aqueles que querem desqualificar as instituições públicas do país se utilizam de artifícios para fins diferentes daqueles que apontam para uma universidade digna e cidadã.
Ele frisou o papel destacado de Roberto Leher, em várias instâncias governamentais e fóruns acadêmicos, na denúncia da insuficiência do orçamento das instituições públicas de ensino superior, especialmente da UFRJ.
Para o dirigente da Andifes, a atual matriz de distribuição dos recursos orçamentários das universidades federais desconsidera a dimensão da UFRJ, que tem, por exemplo, diversos prédios tombados pelo patrimônio histórico e inúmeros hospitais que prestam serviços de atendimento à população.
Centoducatti destacou ainda que a universidade pública pertence à sociedade brasileira e o esforço de qualquer gestão deve ser aprimorá-la como instituição de ensino, extensão e pesquisa. Por isso, defendeu que o sítio arqueológico deixado pelo incêndio deve ser utilizado para ensinar, aprender, produzir conhecimento e construir o futuro.
Já João Salles, vice-presidente da Andifes, disse que museus e universidades tiram o Brasil do provincianismo. Ele considera que as críticas à universidade pública partem daqueles que querem aproveitar a oportunidade para destruir o compromisso do Estado com o financiamento do ensino superior e dos equipamentos culturais de qualidade, que tornam o país menos provinciano e mais aberto a valores humanitários universais.
Para Salles, a barbárie é sorrateira e se aproveita de forças que imaginávamos nem mais existir. “Temos que estar alertas neste momento porque temos assistido a um verdadeiro ataque. Algo da aura da universidade se quebrou e num momento como esse a universidade deveria ser a primeira a ser chamada para pensar o destino do museu.”
Mas, apesar dos ataques, Salles disse ter a certeza de que essa geração não irá testemunhar o fim da universidade pública inclusiva e de qualidade. “Resistiremos para que o deserto não nos tome por dento e não extinga as nossas instituições”, completou.
Autonomia é garantida pela Constituição
Denise Nascimento, vice-reitora, destacou que a expressiva presença da comunidade universitária no evento simboliza a importância do Museu Nacional em um momento trágico para a instituição.
Ela disse que as calúnias dirigidas à universidade pública nos últimos anos pelos setores conservadores da sociedade podem ser explicadas por alguns fatores, entre eles a mudança do perfil dos estudantes por meio de ações afirmativas, que deu oportunidades a milhares de jovens antes excluídos do ensino superior.
Denise também citou o ataque à autonomia universitária que afetou, entre outros, dirigentes da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade Federal de Brasília (UnB). “Agora, tentam fazer o mesmo conosco, mas é preciso lembrar que a autonomia é garantida pela Constituição Federal”, frisou.
Ela criticou também a cobertura do incêndio feita pela grande mídia, que em nenhum momento destacou a importância do Museu na formação de estudantes, na pesquisa e nas atividades de extensão abertas à comunidade.
Por fim, a vice-reitora salientou que a perda de boa parte do acervo do Museu Nacional é irrecuperável, mas que a UFRJ resistirá e continuará a luta por uma universidade autônoma, democrática, laica e socialmente referenciada.
Reitores de universidades do Rio dão apoio à UFRJ. Leia mais
Os reitores das universidades públicas do Rio de Janeiro compareceram à plenária comemorativa dos 98 anos da UFRJ para expressar solidariedade à instituição, vítima de acusações infundadas e notícias falsas desde o incêndio no Museu Nacional, em 2/6.
Ricardo Berbara, reitor da Universidade Federal Rural do Rio de janeiro (UFRRJ), disse que a meta daqueles que criticam a UFRJ é destroçar o projeto de futuro do país, alicerçado no desenvolvimento inclusivo, nas universidades públicas e na diversidade cultural do país. “Mas se esqueceram dos que sonham e lutam. Dos alicerces da destruição do Museu buscaremos forças para a construção de um futuro pautado nas liberdades, na democracia, na ciência e na tecnologia”, frisou.
Luiz Pedro San Gil Jutuca, reitor da Universidade Federal do Estado do Rio de janeiro (Unirio), salientou que a grande mídia tendenciosa critica a UFRJ sem conhecer a sua realidade financeira. Segundo ele, nos últimos anos, nenhuma universidade federal do país tem orçamento suficiente para funcionar a partir do mês de outubro. “O reitor é obrigado a fazer escolhas de sofia para tocar a universidade. E querem nos culpabilizar. Leher defende a universidade brasileira e pode contar com o nosso apoio”, destacou.
O reitor da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf), Luís Passoni, após manifestar solidariedade à gestão da UFRJ, ressaltou que a tragédia que atingiu o Museu Nacional é fruto da ideologia neoliberal, que está usurpando toda a esfera pública. “O neoliberalismo desvia o foco da ação do Estado para um privatismo mercantil. Precisamos nos unir para evitar que algo parecido aconteça novamente”, advertiu.
A professora Tania Netto, Sub-reitora de Graduação da Universidade Estadual do Rio e Janeiro (Uerj), levou a mensagem de que a suaxa0 instituição de ensino está junto com a UFRJ para o que for necessário. “Aqueles que pensam que podem destruiu a universidade pública não passarão. Nós restaremos, apesar dos ataques. Eles nunca foram e não serão maiores que a nossa força e o nosso amor à educação pública”, completou a docente, que representou a Reitora da Uerj na plenária.