No ano de 2013, Edward Snowden, ex-analista da Agência de Segurança Nacional (NSA) norte-americana, divulgou ao mundo os detalhes do sistema de vigilância global exercido pela NSA sobre governos, empresas e cidadãos,xa0por meio principalmente da internet.
Os documentos revelados por Snowden mostram a existência de inúmeros programas visando à captação de dados, emails, ligações telefônicas e qualquer tipo de comunicação entre cidadãos em nível mundial.
A divulgação da vigilância exercida pelo Estado norte-americano abriu os olhos das pessoas para uma prática de ocorrência universal. No Brasil, a situação não é diferente.
Projetos preveem controle da web no país
Atualmente existem no país cerca de seis projetos de lei que objetivam aumentar a censura e a vigilância na internet. São projetos que usam a justificativa de combater crimes cibernéticos como pretexto para diminuir a liberdade dos brasileiros na web.
Essas iniciativas colocam em risco não apenas o Marco Civil da internet − documento assinado e regulamentado pela presidenta Dilma Rousseff, no dia 12 de maio de 2016, um dia antes do seu afastamento do cargo, que visa garantir direitos e deveres de usuários, empresas e governos na web, mas também a democracia e a liberdade de expressão.
Diante desse cenário, o Núcleo de Solidariedade Técnica (Soltec/UFRJ) criou um grupo de estudos com universitários de diferentes cursos e em diferentes estágios de formação acadêmica. O projeto, intitulado Tecnologias da Informação para Fins Sociais (TIFS), tem como principais objetivos debater o tema da vigilância e implantar um programa de apoio a lideranças e ativistas ligados a movimentos sociais.
“O grupo teve seu início com entrevistas simples, visando mapear quais os artefatos e ferramentas de comunicação estavam sendo usados por esses movimentos sociais. Frequentamos cursos destinados a sindicatos de comunicação, fizemos pesquisas e entrevistamos os ativistas dos movimentos anonimamente, apenas para sistematizar os dados e estruturar a abordagem do nosso projeto”, explica Pedro Braga, mestrando de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia na UFRJ, graduado em Ciência da Computação e idealizador e coordenador do TIFs.
Cursos abordam cultura da segurança
O TIFs, elaborado em 2015, ganha cada vez mais forma e aderência. A intenção dos organizadores agora é preparar neste segundo semestre de 2016 dois cursos sobre a temática da vigilância.
De acordo com Braga, o primeiro curso terá um direcionamento mais voltado para a sensibilização e o comportamento dos ativistas diante da situação. “Será uma espécie de palestra mesmo. Mais importante do que qualquer ferramenta é a cultura de segurança. Não existe nenhuma ferramenta mágica que impeça você de ser vigiado. O mais importante é ter conhecimento da situação e tomar precauções. Entender de maneira bem realista de quem você está se protegendo e o tipo de software que está usando”, alerta.
Já o segundo curso será mais ferramental e teórico. “Vamos ensinar a usar ferramentas de software, como criptografia de email. Não é possível acabar com a vigilância totalmente, mas podemos evitá-la, dificultando a quebra de sigilo e nos protegendo da melhor maneira possível”, afirma.
Para ele, o maior risco de vigilância está nos softwares privados. “É muito relativo. Não existe nenhum software que seja 100% seguro. O que é seguro hoje em dia? Mas o principal problema seriam os softwares proprietários. Por meio deles, as empresas privadas fornecem dados para o Estado vigiar os movimentos sociais.”
“Uma ameaça à democracia”
Para Leonardo De Marchi, professor da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, o sistema de vigilância digital é uma ameaça concreta contra a democracia. “Quando o Estado e as grandes empresas exercem monitoramento de pessoas ligadas a movimentos sociais e políticos, principalmente por vias consideradas ilegais, eles começam a minar toda a liberdade de expressão do indivíduo”, assinala.
Segundo o docente, esse monitoramento é utilizado, em ultima instância, para a prática de controle ideológico, que resulta muitas vezes em prisões, cerceamento do pensamento e produção de informações falsas a respeito dessas pessoas.
“A difamação do selfie digital que atinge pessoas dos movimentos sociais e políticos passou a ser uma prática extremamente comum. Há uma dicotomia entre liberdade de expressão e segurança individual e nacional. Essa ideia difusa de segurança leva à censura”, afirma De Marchi, que também é professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e tem pós-doutorado em Políticas e Sistemas da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP).
Segundo ele, emails, redes sociais, smartphones, telefonemas e buscas na internet tornaram-se fontes e veículos empregados pelo governo para a imposição de um Estado vigilante. Um Estado que monitora e vigia a todos, mas direciona seu foco principalmente para populações marginalizadas, ativistas e para organizações sociais, grupos que, de alguma forma, possam comprometer a hegemonia dos poderes estabelecidos.
“Facebook é inimigo número um dos ativistas”
Pedro Braga acredita que a principal fonte de vigilância hoje é o Facebook. “É definitivamente o pior. Se você pensa, por exemplo, no caso dos 23 presos políticos do Rio de Janeiro e lê o documento liberado pela Delegacia de Repressão a Crimes de Informática (DRCI), vai ver que a grande maioria dos dados foi obtida por meio do Facebook mesmo. Eles [o Estado] não têm um trabalho tão técnico de quebrar sigilos. Muita coisa o Facebook simplesmente fornece, vende pra eles”, afirma.
Braga diz ainda que a maior fonte de lucro do Facebook é a própria vigilância. Segundo ele, o usuário não é o principal cliente do site, mas o seu principal produto. O Facebook transforma os usuários em bancos de dados e vende as informações que retira dali para grandes empresas.
“Quem você é? O que você faz? No que acredita? Pelo que você luta? Como você faz isso? O Facebook sabe de tudo isso. O site é um artefato de comunicação eficiente para os movimentos, mas deve-se ter cuidado. Criar um fake ou mascarar o IP do computador são alternativas. Riscos vão existir, mas há maneiras de diminuí-los”, explica.
Software livre é a melhor alternativa
A melhor saída para evitar a vigilância é o uso de softwares livres, de propriedade pública. “Não é uma alternativa 100% segura. O Telegram, por exemplo, é um software livre, mas já houve situações de vigilância. Colocaram um P2 [informante da seção de inteligência da Polícia Militar] como infiltrado num grupo de movimento militante. Ele se informava e transmitia as informações aos superiores. Mesmo existindo casos como esse, o software livre ainda é um veículo bem mais seguro do que os softwares proprietários”, frisa.
Para o coordenador do projeto TIFs, todos os movimentos sociais são atingidos de alguma forma por essa atual configuração da web, mas os que mais sofrem com ela são aqueles que estão em alta na mídia.
“Depende muito do cenário atual, do que está acontecendo. Trabalhamos com grupos contra-hegemônicos, militantes sindicais, partidários, políticos, pessoas que disputam o poder e sentem que correm riscos de serem ilegalmente vigiados pelo Estado, pela polícia, por empresas privadas ou grupos adversários de direita conservadora”, conta Braga.
O professor Leonardo De Marchi considera projetos como o TIFs extremamente importantes. “O mundo parece caminhar para trás novamente, em direção a uma era de ‘eclipse da razão’, como diria o filósofo e sociólogo alemão Max Horkheimer. No Brasil, há um impasse muito grande entre seguir o caminho de extensão da democratização do meio digital ou aumentar a censura. Projetos e leis que visem conscientizar e auxiliar as pessoas contra a vigilância, nesse momento, me parecem ainda mais cruciais”, afirma o professor.
Esse cenário acaba por evidenciar ainda mais a fragilidade da democracia brasileira e reforça a necessidade de retomada do apoio a projetos de implementação de softwares livres nas esferas públicas e o incentivo ao aprendizado da comunicação criptografada e à navegação anônima.