O programa Escola Sem Partido, também conhecido como Lei da Mordaça, é uma proposta de lei que pretende impedir os professores do ensino fundamental e médio de expor e discutir, em sala de aula, suas opiniões e convicções a respeito de temas como religião, sexualidade e política.
Ele prevê a fixação, em todas as salas, de um cartaz intitulado “Deveres do Professor”, entre os quais o de “não fazer propaganda político-partidária nem incitar seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas”.
Para os apoiadores dessa ideia, como pastores evangélicos e políticos e organizações conservadores, o ensino estaria contaminado por “ideologias de esquerda e de gênero”.
O projeto inicial, criado em 2004 por membros da Organização Não Governamental (ONG) Escola Sem Partido, traduz-se hoje em iniciativas de lei em diversos estados e no Congresso Nacional e vem ganhando cada vez mais a atenção da sociedade.
Projetos de lei proliferam no Brasil
São várias as iniciativas de lei do Movimento. Duas delas aguardam tramitação no Congresso Nacional: uma na Câmara dos Deputados, o PL 867/2015xa0de autoria do deputado Izalci Lucas (PSDB), e outra no Senado Federal, o PL 193/2016,xa0apresentado pelo senador e pastor evangélico Magno Malta (PR-BA).
Outros 11 projetos similares tramitam nas casas legislativas de dez estados e no Distrito Federal. Isso sem contar com as iniciativas legislativas similares em Câmaras de Vereadores de muitos municípios.
A celeridade com que esses projetos vêm tramitando, para muitos, é preocupante. Diante disso, foi criada no mês de julho, por entidades da educação, sindicatos, partidos e movimentos sociais, a Frente Nacional Escola Sem Mordaça.
A Frente vem organizando uma agenda conjunta de manifestações e atos sobre o tema e protocolou cartas no Ministério da Educação (MEC) e no Congresso Nacional exigindo audiências públicas para discussão dos projetos em tramitação.
Confira o manifesto da Frente Nacional contra o Projeto Escola Sem Partido no site.
Cerceamento da liberdade de cátedra
Maria Cristina Miranda da Silva, diretora e professora de Artes Visuais do Colégio de Aplicação (CAp) da UFRJ e participante ativa da “Frente Nacional Escola sem Mordaça”, classifica o programa como um retrocesso.
“Na UFRJ, consideramos inadmissível a postura do MEC e do governo, que, antes de receber as entidades acadêmicas e sindicais da educação, recebeu um pretenso ator junto com um grupo que propugna o cerceamento da liberdade de cátedra e difunde valores de ódio na sociedade. É preciso que os educadores e educadoras se posicionem publicamente sobre tamanho retrocesso” afirma.
Na opinião de Maria Cristina, todos os temas, sem exceção, devem ser tratados na escola de forma dialógica, sistemática, rigorosa, objetivando a formação da autonomia moral dos sujeitos.
“Não cabe doutrinação, mas esclarecimento crítico. Com base na autonomia moral, esclarecida, podemos reconhecer nas diversidades a profunda igualdade humana de todos os indivíduos”, destaca a diretora do CAp/UFRJ.
Para ela, não se trata de “instrução” e muito menos “indução”. “A escola”, diz, “é o lugar da educação no seu sentido mais abrangente, da possibilidade da humanização, da construção do conhecimento e não da divisão entre aqueles que pensam e aqueles que fazem. É o lugar da ciência, da filosofia, da arte e da cultura. É o lugar do debate de ideias”, sustenta Maria Cristina, que atua também na área de educação básica e de formação de professores.
O risco da volta da Educação Moral e Cívica
De acordo com Luiz Antônio Cunha, professor titular da Escola de Educação da UFRJ e membro do Observatório da Laicidade na Educação, a escola não pode ser neutra, mas deve haver um cuidado especial por parte dos professores.
“A escola deve se posicionar contra as discriminações, as opressões, a ignorância. Não há neutralidade. No entanto, vivemos uma era de transição de valores e padrões de comportamento”, observa.
Numa sala de aula, segundo Cunha, são encontrados alunos e professores que vivem no mesmo tempo cronológico, mas estão em diferentes tempos sociais e contextos, que variam de acordo com a base familiar e a educação de cada um. Por isso, defende que questões como sexualidade, política e religião devem ser tratadas com cuidado pelos professores, mas nunca deixar de serem debatidas.
No entanto, para o professor, caso o projeto seja aprovado, o ambiente escolar se tornará insuportável. “Um lado da lei é apenas tampar a boca. A imagem que traz o nome ‘lei da mordaça’ me parece muito adequada. Já é algo absurdo. Mas não se trata apenas disso. Essa boca não ficaria inteiramente tampada. Seriam enfiados ‘goela’ abaixo a educação moral e cívica e o ensino religioso obrigatório. A escola continua tendo um partido”, condena.
A inconstitucionalidade do projeto
O projeto Escola sem Partido afirma se basear na Constituição Federal e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, cujo artigo 12 estabelece que os pais têm direito a que seus filhos recebam educação religiosa e moral de acordo com suas próprias convicções.
Para Sérgio Sant’Anna, advogado do Instituto de Advogados do Brasil e responsável por um estudo dos aspectos inconstitucionais do Programa Escola Sem Partido, houve uma distorção desse argumento.
Segundo ele, a natureza do conteúdo aprovado tanto na Convenção quanto na promulgação da Constituição deve ser analisada levando em consideração o cenário da época.
“A Constituição foi aprovada no contexto de uma carta política que simbolizava o Estado Democrático de Direito e como resposta ao Estado Autoritário. Foi definida como Constituição Cidadã e vários dos seus artigos abordam essa perspectiva de liberdade de manifestação em relação a posições políticas, ideológicas e doutrinárias” explica.
O advogado lembrou que o mesmo ocorre com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, adotada em um período de ditaduras militares e da Guerra Fria. “São documentos que tentavam resgatar o direito individual e a liberdade de manifestação. O Escola Sem Partido utiliza esse argumento de forma oportunista, buscando justamente o contrário, ou seja, restringir e censurar”, critica.
De acordo com Sergio Sant’Anna, inúmeros artigos da Constituição brasileira seriam violados, caso o projeto fosse aprovado. Aspectos como cidadania, valores sociais do trabalho, pluralismo político, liberdade de manifestação de pensamento, consciência e expressão intelectual seriam gravemente comprometidos.
O advogado reuniu uma série de evidências baseadas em seus estudos e pesquisas e contestará na Justiça a continuidade do projeto.
“No século XXI, não se pode aprisionar o mundo em dogmas”
O Programa Escola Sem Partido, que diz defender a liberdade de crença e pensamento, tem, na verdade, um teor de censura e de perseguição à liberdade de cátedra e de expressão dentro do ambiente escolar.
Para muitos educadores, o projeto acarretaria uma supressão da democracia nas salas de aula, o que acabaria impedindo o debate plural sobre temas cruciais como história, política, gênero, direitos humanos e combate às opressões, impossibilitando o exercício de uma pedagogia que propicie autonomia de pensamento aos estudantes.
Segundo Maria Cristina Miranda da Silva, diretora e professora de Artes Visuais do Colégio de Aplicação (CAp) da UFRJ, o desgaste da política que estamos vivendo no país pode levar a uma interpretação equivocada dos projetos que tramitam com esta classificação de “sem partido”.
Para ela, é um “mote” que induz uma compreensão superficial e equivocada. “Não está em questão despartidarizar ou desideologizar as escolas. Ao contrário, busca-se amordaçar os professores, eliminar determinadas linhas de pensamento, a fim de que o pensamento hegemônico e os dogmas não sejam colocados em questão. Por isso é muito importante que todos leiam, discutam e conheçam os projetos que tramitam nas casas legislativas de todo o país, afirma.
“Quando comparamos os princípios propostos nos projetos de lei com os que estão no artigo 206 da Constituição Federal, fica mais clara a intenção de eliminar o pluralismo de concepções pedagógicas e a liberdade de ensinar. Na prática, pretendem uma escola sem ciência, arte e cultura. Como se, em pleno século XXI, fosse possível aprisionar o mundo em dogmas há muito superados, concluiu.