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Pesquisa aponta caminho inédito contra a obesidade

Estudo revela como uma molécula ativa a queima de energia no tecido adiposo, sem afetar o apetite

Recentemente publicada na revista Nature Metabolism, uma descoberta desenvolvida em parceria entre universidades brasileiras e o Instituto Pasteur de Montevidéu pode revolucionar o mercado de medicamentos para obesidade. O trabalho reúne cientistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universidade de São Paulo (USP) e aponta para uma nova substância capaz de induzir a perda de peso por meio de um mecanismo celular pouco explorado, sem interferir no apetite ou atuar no sistema nervoso central. Juliana Camacho, professora do Instituto de Bioquímica Médica (IBqM) da UFRJ, é uma das colaboradoras. A etapa inicial foi financiada pelo Instituto Pasteur de Montevidéu e pela Eolo Pharma, empresa de biotecnologia pioneira em novas abordagens para tratar obesidade e doenças metabólicas. O coordenador do estudo é o Dr. Carlos Escande, pesquisador do Laboratório de Doenças Metabólicas e Envelhecimento do Instituto Pasteur de Montevidéu.

Como a droga funciona: uma termogênese diferente 

Os experimentos mostram que a nova droga é capaz de realizar uma termogênese –  processo pelo qual o corpo produz calor, aumentando o gasto energético e, consequentemente, a queima de calorias – diferente da convencional. ​​Até o momento chamado de Sana – do inglês salicylate-based nitroalkene –, o fármaco é um derivado do salicilato, um composto orgânico base para outros medicamentos com propriedades analgésicas e anti-inflamatórias. Em experimentos iniciais, observou-se uma redução significativa de peso em animais. A hipótese inicial era de que a substância ativasse o caminho clássico da termogênese, por meio da proteína desacopladora na mitocôndria. Mas testes com inibidores mostraram que o efeito não acontecia por esse caminho.

A partir daí, a equipe investigou outra possibilidade: um mecanismo de reciclagem de creatina, conhecido como ciclo fútil. Nesse processo, a creatina captura ATP, forma fosfocreatina e depois libera novamente, mantendo a produção de energia ao mesmo tempo em que gera calor. Isso força o corpo a consumir mais nutrientes, aumentando o gasto calórico total.

Nos testes, a substância demonstrou reduzir o peso de roedores mesmo em dietas ricas em gordura, além de melhorar a sensibilidade à insulina e reduzir o acúmulo de gordura no fígado. Esses efeitos também abrem caminho para estudos em doenças metabólicas como diabetes tipo 2 e esteatose hepática.

Ciência básica: uma conquista coletiva

Para Juliana Camacho, entender o funcionamento da mitocôndria, analisar como o tecido adiposo consome energia ou oxigênio é parte de uma ciência aparentemente básica, mas que pode ser o ponto de partida para transformar um composto em potencial medicamento. O impacto vai muito além da obesidade tratada como questão estética: doenças metabólicas estão diretamente ligadas ao envelhecimento populacional, ampliando riscos de diabetes, doenças cardiovasculares e até Alzheimer.

No Brasil, o cenário é especialmente preocupante. A população idosa cresce rapidamente, sem infraestrutura proporcional. Segundo Juliana, estima-se que, nos próximos 50 anos, podemos ter 40% da população brasileira com mais de 60 anos e 70% dos idosos dependem exclusivamente do SUS para tratar doenças crônicas. 

Juliana compartilha a conquista com sua equipe. Leonardo de Souza, aluno de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Bioquímica (PPGBq – UFRJ), lembra dos desafios do laboratório: a extração de mitocôndrias de tecido adiposo exigiu meses de protocolos complexos. “O tecido era pequeno, muito gorduroso, e a gordura interfere na extração de mitocôndrias. Foram dias começando às sete da manhã e terminando à meia-noite para ajustar tudo”, conta. Para ele, ver o trabalho reconhecido em uma revista científica de prestígio internacional é um passo que mostra o valor da ciência feita no Brasil.

O que vem a seguir 

Em animais, a redução de peso ocorreu em média em oito semanas de tratamento. A fase 1 de testes clínicos em humanos, realizada com um pequeno grupo de no máximo oito pessoas, confirmou a segurança da substância e apontou redução de peso similar à de medicamentos já aprovados para obesidade. Ainda assim, os pesquisadores ressaltam que a eficácia só poderá ser confirmada em fases clínicas mais avançadas, que exigem recursos financeiros elevados e grandes grupos de voluntários.

Com a conclusão da fase 1 – chamada fase de segurança –  restam ainda as fases 2 e 3 para que a substância possa, futuramente, passar a ser um medicamento. A fase 2 avalia a eficácia da droga e investiga possíveis efeitos colaterais em um grupo maior de voluntários. Já a fase 3 amplia ainda mais o número de participantes, podendo envolver milhares de pessoas, para confirmar a eficácia, monitorar reações adversas e comparar os resultados com tratamentos já existentes. Depois de todas essas fases de testes é que se torna possível afirmar que a droga pode ser transformada em medicamento para a população. O desenvolvimento dessas etapas costuma depender do interesse de grandes farmacêuticas, já que exige alto investimento e infraestrutura para os testes em larga escala.

Com a fase 1 concluída, o IBqM/UFRJ segue investigando outras possibilidades. O próximo objetivo é entender, em detalhes, como o ciclo da creatina se conecta a outras proteínas e vias bioquímicas, abrindo novas perspectivas para tratamentos futuros.

“A ciência é isto: nada se cria, tudo se transforma. Ainda queremos descobrir quais outras proteínas e vias podem estar envolvidas e, quem sabe, abrir portas para novos tratamentos”, conclui Juliana.

Pesquisa: Tatiane Alves