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Do pano da costa ao alaká

Pesquisa da Escola de Belas Artes repensa a indumentária negra a partir das religiosidades de matriz africana

As vestimentas de um povo falam muito sobre ele: seus costumes, sua história e tradição. No entanto, o apagamento desse legado pode ser um fator de descaracterização dessa herança, promovendo uma falta de identificação interna no próprio grupo. Segundo Aline Santiago, mestra em História e Crítica de Arte pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV) da Escola de Belas Artes (EBA), esse é o caso do pano da costa, uma peça indumentária utilizada no Brasil por pessoas de religiosidades de matriz africana.

O pano da costa é um tecido normalmente utilizado por mulheres no candomblé e na umbanda. Enrolado em torno dos seios e do ventre, ele tem como intuito principal a proteção espiritual. Ainda assim, na dissertação O sacrifício dos fios do Alaká! Tecidos e cultura do vestir afrodiaspórica na historiografia da arte brasileira, a pesquisadora mostra como esse nome foi dado à peça a partir de uma perspectiva genérica e colonial que ignorava a diversidade étnica, os diferentes modos de produção e as múltiplas nomenclaturas atribuídas por cada povo.

Os povos africanos que chegaram ao Brasil representavam uma pluralidade cultural imensa e, em meio ao processo colonizatório, um dos nomes sobreviventes dados a esse tecido foi alaká, utilizado em comunidades de terreiro mais antigas, como o Ilê Axé Opô Afonjá, o Engenho Velho de Brotas e o terreiro do Gantois, todas localizadas em Salvador, na Bahia. Apesar de essas tradições preservarem uma cultura atrelada aos povos iorubás – oriundos do que hoje é chamado de Nigéria e Benin, prioritariamente –, o nome alaká é de origem fon, grupo étnico também da África Ocidental. Os dois povos têm relação de proximidade territorial, já que os fons estão estabelecidos em parte do Benin e no Togo.

Eugênia Anna dos Santos, Mãe Aninha com alaká. | Usado com permissão do Smithsonian Institution, Washington, DC, National Anthropological Archives, Papers of Ruth Schlossberg Landes. (Disponível da dissertação)

Para além das diferenças na nomenclatura, Aline se debruça também nos modos de produção do alaká, a partir da análise aprofundada da feitura mecânica do produto enquanto objeto artístico tradicional e revisando conceitos a partir de um olhar afrorreferenciado. Por ser pessoa de religiosidade negra, mais especificamente uma ekedy no candomblé, a pesquisadora uniu seus aprendizados do lado de dentro da comunidade com a pesquisa acadêmica. Com a tarefa de zelar pelas roupas da entidade da qual é responsável, Aline precisou se aprofundar na concepção da vestimenta, cuja produção envolve técnicas tradicionais – como o uso da folha da bananeira – pouco conhecidas fora das comunidades de terreiro. Isso fez com que ela desejasse se aprofundar nesses outros modos de fazer indumentárias a partir de perspectivas afrodiaspóricas.

A partir disso, o alaká foi selecionado enquanto objeto de sua análise. Para isso, Aline realizou sua pesquisa de campo no terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, onde está situada a Casa do Alaká, local de produção da roupa a partir do modo tradicional: mecanicamente, cada alaká pode levar até 30 dias para ser feito. A falta de valorização da técnica e a popularização de outros tecidos industriais para serem utilizados como pano da costa encarecem a manutenção do alaká no cotidiano dos terreiros, o que faz com que essa tradição vá se perdendo ao longo do tempo.

“Isso acabou se construindo como uma realidade muito concreta dentro das comunidades de terreiros, pelo menos no contexto da Bahia, de Salvador. Virou um artigo de luxo você poder comprar um alaká, uma coisa para quem realmente tem condição financeira, o que é muito triste”, explica a pesquisadora.

Diante dessa realidade, a atuação do Coletivo Tramar tem buscado ir na contramão desse movimento de escassez. Ligado à UFRJ e idealizado por Aline e quatro amigas, o projeto busca repensar a cultura do vestir africano e afrodiaspórico incluindo o debate na história da arte no Brasil. Além de estabelecer uma parceria com vários mestres no Brasil e no continente africano, o coletivo tem pensado uma forma de patrimonializar o alaká, levando esse debate tanto para a Câmara dos Vereadores de Salvador, quanto para a Prefeitura.

“(Isso é) para a gente começar a dar um pontapé inicial a partir da esfera do município na produção dessa lei que assegure a garantia de aposentadoria, principalmente, a essas mulheres. Não são só mulheres que produzem esses tecidos ligados às religiosidades negras, mas é um perfil muito feminino”, conclui Aline, ressaltando que também há muitos mestres homens na manutenção desse legado.