Categorias
Cultura Sociedade

Teatro Experimental do Negro comemora 80 anos da primeira exibição

Em 8 de maio de 1945, o TEN apresentava espetáculo histórico no Theatro Municipal

Na noite de 8 de maio de 1945, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro foi palco de uma apresentação muito diferente de tudo que havia sido realizado nos seus então 34 anos de existência. Criado em 1909, o Municipal nunca antes tivera em seus espetáculos atores negros, muito menos como personagens principais, como aconteceria naquela noite. A primeira exibição do Teatro Experimental do Negro (TEN) marcou para sempre o teatro e a arte brasileira.

O grupo foi criado em 1944, no Rio de Janeiro, por Abdias Nascimento, que na época ainda iniciava sua vida artística. Abdias era formado em Economia, pela Universidade do Rio de Janeiro, que posteriormente veio a se chamar Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ao assistir à peça O Imperador Jones, de Eugene O’Neill, em Lima, capital do Peru, o intelectual percebeu as relações existentes entre aquela encenação e a sociedade brasileira. O espetáculo era sobre a história de Brutus Jones, drama em que os dilemas  eram baseados nas dores e feridas existenciais da pessoa de origem africana na sociedade racista das Américas. 

Apesar disso, o personagem Brutus foi interpretado por um ator branco, pintado como negro, prática conhecida como blackface, muito comum na época. Abdias questionou-se, então, sobre o motivo de isso acontecer, inclusive no Brasil. O intelectual lembrou que, mesmo no país, que tem a população composta majoritariamente por pessoas negras, ele nunca tinha visto um espetáculo cujo papel principal houvesse sido representado por uma pessoa negra. Para Abdias, se esse mesmo espetáculo, O Imperador Jones, fosse montado no Brasil, também teria sido representado por um ator branco forjado de negro. Assim, Abdias despertou para a necessidade de criação do TEN, que geraria uma movimentação na forma como o teatro e a sociedade brasileira lidavam com o negro no Brasil. 

Além do teatro


Em artigo publicado na Revista Estudos Avançados, da Universidade de São Paulo (USP), em 2004, Abdias afirmou: “O Teatro Experimental do Negro se propunha a resgatar, no Brasil, os valores da pessoa humana e da cultura negro-africana, degradados e negados por uma sociedade dominante que, desde os tempos da colônia, portava a bagagem mental de sua formação metropolitana europeia, imbuída de conceitos pseudocientíficos sobre a inferioridade da raça negra. Propunha-se o TEN a trabalhar pela valorização social do negro no Brasil, através da educação, da cultura e da arte”.

O objetivo do grupo era ser um instrumento de transformação social para a população negra e as relações sociais entre negros e brancos no Brasil. O TEN desenvolveu diversas ações no sentido de oferecer autonomia para seus participantes, entre elas a alfabetização. Muitos deles eram operários e empregados domésticos, ou pessoas sem profissão definida. As atividades do TEN ofereciam a oportunidade de que as pessoas se instrumentalizassem, além de conseguirem perceber o lugar que o negro ocupava na sociedade brasileira.

Em 8 de maio de 1945, o grupo apresentou sua primeira montagem, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, palco onde jamais havia pisado um ator negro. O texto escolhido foi O Imperador Jones, de  O’Neill, o mesmo que fizera Abdias despertar para a necessidade de criação do TEN. O autor do texto cedeu os direitos para que o grupo fizesse a montagem. O espetáculo lançou o ator Aguinaldo Camargo como intérprete de Brutus Jones. 

A trajetória desenvolvida pelo TEN foi possível porque já existiam a luta e o envolvimento anteriores do movimento negro, as ações realizadas por Abdias e seus companheiros e companheiras. Chico Rei, no início do século XVIII, em Minas Gerais, organizou um movimento para alforriar negros escravos; a Revolta dos Malês, no estado da Bahia em 1835; a República dos Palmares, em Alagoas, no século XVI e o movimento abolicionista são alguns deles.

Mudança nos estudos raciais no Brasil

A criação do TEN se deu em um momento no qual os estudos raciais no Brasil eram restritos a uma pseudociência, usada para justificar as hierarquias raciais na sociedade pós-abolição. Com a abolição da escravidão como sistema oficial de trabalho, em que teoricamente os negros seriam elevados ao padrão de cidadãos, eram necessárias outras formas de justificativa para relegar os negros à escória social. Uma das teorias raciais importadas da Europa e atualizadas para o Brasil vigente naquela época foi a eugenia. Estudiosos eugenistas como Oliveira Vianna e Nina Rodrigues acreditavam que o desenvolvimento do país dependia de que a população fosse composta por uma raça pura, a ariana. Vianna preconizava que a população brasileira se embranqueceria com o tempo e o país não estaria, de acordo com o que outros pensadores diziam, fadado ao fracasso graças a sua composição racial – já marcada pela mestiçagem.

Os estudos raciais no Brasil foram marcados, inicialmente, pelo pensamento de que o negro era objeto de estudo, não o protagonista de sua própria história. Estudiosos brancos preocupavam-se não só em ter os negros como um objeto de estudo, mas muitas vezes em encontrar soluções para conter o avanço da massa negra e da mestiçagem, o que já era uma realidade no país. O TEN representa, então, uma grande virada nos estudos raciais.

Foi no TEN que diversos artistas se desenvolveram: Lea Garcia, Ruth de Souza, Arinda Serafim, Milton Gonçalves, Haroldo Costa, Marina Gonçalves, entre outros. Ivanir dos Santos, babalawô e professor do Programa de História Comparada da UFRJ, crê que até mesmo os atores negros da atualidade têm influência do grupo:

“Todos os grandes atores e atrizes que entraram no campo televisivo, que saíram do teatro para a televisão e para o cinema nos anos 1960, 1970 e até agora, recentemente, nos anos 2000 tiveram sua origem no Teatro Experimental do Negro. Mesmo os mais jovens foram inspirados por esses atores e atrizes”, conta.

O professor destaca também o trabalho político de Abdias do Nascimento: “O Abdias não só fazia teatro; fazia política. Ele trazia isso para o debate antirracista no Brasil. O maior exemplo dessa vitória são as atuais novelas da TV Globo”.