O mês de fevereiro é voltado, em todo o mundo, para a conscientização das pessoas a respeito dos cuidados e da atenção aos portadores de doenças raras, principalmente o dia 28 desse mês (o Rare Disease Day, dia das doenças raras, em tradução livre). De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), as doenças raras afetam até 65 a cada 100 mil pessoas. Entre as enfermidades está a Síndrome de Angelman, que terá o primeiro projeto nacional para mapeamento do perfil demográfico e clínico de portadores encabeçado pela professora Ana Luísa Kremer Faller, do Instituto de Nutrição Josué de Castro (INJC), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A Síndrome de Angelman passou a ser mais conhecida no ano passado, quando o ator Colin Farrell, protagonista da uma minissérie americana de ação e suspense baseada no universo fictício do super-herói Batman, veio a público para anunciar a criação de sua fundação em homenagem ao filho, diagnosticado com a doença. De modo geral, os portadores da síndrome apresentam epilepsia, atraso global do desenvolvimento, deficiência intelectual, ataxia, dentre outras comorbidades, em decorrência da alteração de gene presente no cromossomo materno.
A proposta da professora Ana Luísa é, em especial, avaliar o estado nutricional, o consumo e a segurança alimentares dos portadores da síndrome a partir de pesquisas com as famílias deles. O projeto de extensão “Raro Cuidado: Promoção de Saúde e Alimentação Saudável para Pessoas com Doenças e Síndromes Raras”, de 2022, foi o ponto de partida. Buscando analisar as inter-relações entre determinantes sociais, estado nutricional e aspectos clínicos na Síndrome de Angelman, a pesquisa acabou deslanchando no ano seguinte.
Segundo a professora do INJC, que também é mãe de uma criança diagnosticada com a síndrome, a condição da filha a encaminhou para a Associação Angelman Brasil. “Lá passei a ser referência para questões alimentares dos pais. As demandas geraram algumas cartilhas com orientações. Mas a gente começou a ver o quanto seria importante mapear e ter dados mais epidemiológicos. Descobrir quem são essas famílias e onde elas estão distribuídas pelo país passou a ser o foco. Esses são gargalos para doenças raras no Brasil”, explicou Ana Luísa.
Para a pesquisadora, é difícil se basear em exemplos e situações de outros países, pois a lacuna provocada pela desigualdade econômico-social é muito grande, provocando problemas como, por exemplo, na aquisição de medicamentos. “Havia a necessidade de ter um estudo mais abrangente nacional para pegar essas singularidades da população brasileira. E dar origem a políticas públicas de atendimento.”
Descascar mais e desembalar menos
A proposta do projeto Raro Cuidado é também verificar como os alimentos e uma dieta alimentar adequada podem reduzir a demanda por medicamentos. “Algumas vezes, a constipação é a causa de uma insônia e, em decorrência da falta de sono, ocorre a crise epiléptica. Há interligações e, ao fazer ajustes na alimentação, evitando alimentos industrializados, isso ajuda a trazer qualidade de vida para as pessoas”, afirmou Ana.
Na opinião de Carolina Aguiar, presidente da Angelman Brasil, parceira do INJC no projeto, o trabalho da professora do instituto tem sido de extrema importância para a associação e toda a comunidade: “Traçar um perfil nutricional da população com Síndrome de Angelman é fundamental para entendermos o impacto da alimentação adequada no manejo dos sintomas da síndrome, além de recolher dados gerais importantes sobre esses indivíduos e suas famílias. A capacidade da professora de mobilizar tanto os alunos quanto a comunidade para participarem da pesquisa é admirável. A disponibilidade em acolher as famílias e até mesmo orientá-las durante o processo da pesquisa faz toda a diferença”.
Para a professora Ana Luísa, apenas a alimentação não vai impactar no desenvolvimento dos portadores de Angelman, mas conjugar terapias com medicação traz resultados. “O quanto muito alimento ultraprocessado e pouco alimento in natura interferem no número de crises convulsivas que a criança tem ou na necessidade de elevar o uso de medicação para controle ou do desenvolvimento é questão para a qual queremos ter respostas”, ressaltou ela, que destaca que cuidar da flora intestinal pode ser importante para evitar crises nas comorbidades das doenças raras, como a constipação e a epilepsia.
As dificuldades também podem estar relacionadas ao ambiente familiar. “Muitos portadores têm a ingestão de água muito baixa. O ajuste não é só na alimentação, mas em adaptações. Por exemplo, é importante oferecer pequenas porções de líquido mais palatável ou identificar um copo ou canudo que a pessoa use com mais facilidade. Os portadores de síndromes raras também são estimulados pelo aroma, sabor e ambiente. A família não precisa ter uma alimentação diferente, mas fazer pequenos ajustes”, recomendou.
O trabalho no INJC está apenas no início. Somente 40 famílias estavam cadastradas até dezembro passado. Segundo a pesquisadora, a meta é alcançar um número 10 vezes maior para que o trabalho alcance mais representatividade. Para isso, um questionário sobre o tema ficará disponível até 2026. No entanto, a boa notícia é que alguns recortes da pesquisa com dados preliminares já deverão ser levados ao Congresso Brasileiro de Genética Médica, que ocorrerá em Recife no mês de setembro deste ano.