Formado em Letras-Russo pela Faculdade de Letras da UFRJ, o mestre em Literatura Comparada André Rosa sempre se interessou pelos ensaios e livros de Otto Maria Carpeaux, um jornalista e ensaísta austríaco que morou no Brasil por metade de sua vida. O que o estudante não sabia era que, em um sebo na Bélgica, encontraria um livro do autor que nunca chegou ao Brasil: Dos Habsburgos a Hitler. A obra conta a respeito da ocupação da Áustria do século XX a partir do ponto de vista de Carpeaux. Em entrevista ao Conexão UFRJ, André conta sobre a experiência de aprender holandês para poder traduzir a obra e a importância dessa redescoberta.
Conexão UFRJ: Quem era Otto Maria Carpeaux? O que significa esse nome para a história tanto da literatura quanto da Europa também?
André Rosa: Ele foi um grande crítico literário, posso dizer brasileiro, embora austríaco. Porque foi no Brasil que se revelou como crítico. A história dele é muito interessante, pois Carpeaux ajuda a mudar o Brasil e ele próprio é modificado pelo Brasil. Logo, é um diálogo em duas vias. Na Áustria, ele exercia cargos burocráticos, tinha doutorado em Letras, tinha estudado Química e Matemática também. Era um judeu convertido ao catolicismo, mas ainda assim judeu, né? E quando houve ocupação nazista da Áustria, em 1938, ele foi pra Bélgica. Ficou um tempo lá, escreveu esse livro [Dos Habsburgos a Hitler] e veio para cá em 1939. Ele chega aqui, começa a escrever e alguns anos depois se torna crítico literário para se reinventar.
Começa a escrever nos principais jornais da época: O Jornal, Correio da Manhã; é apresentado pelo Álvaro Lins, que era definido pelo Drummond como “imperador da crítica literária brasileira”… Então ele se cerca dos maiores intelectuais brasileiros que escreviam. Carpeaux chega aqui muito católico e conservador, mas as circunstâncias do Brasil o modificam. No fim da vida, ele larga o catolicismo e meio que se entende como agnóstico, quase ateu. Vira um feroz opositor da ditadura militar, tanto na escrita quanto escondendo presos. Portanto realmente parece outra pessoa, se comparado a esse Carpeaux que chega aqui.
Conexão UFRJ: E como foi a sua trajetória de pesquisa sobre ele?
André Rosa: A minha pesquisa com esse autor começou um pouco antes da Universidade. Conheci na minha adolescência pessoas que trabalharam com ele em algum momento e me influenciaram a chegar a esse autor. Desde então, Carpeaux se tornou uma referência para mim. Não só para consultas nos livros dele, alguns enciclopédicos, mas também para orientação de conhecer novos autores. Ele apresenta muita coisa para cá: Franz Kafka, por exemplo, foi ele que introduziu no Brasil. Sou formado em Letras-Russo pela UFRJ e queria muito trabalhar com o tema da literatura russa, mas também gostaria de incluir o Carpeaux nesse rol bibliográfico. Aí eu tive a ideia de estudar a recepção da literatura russa no Brasil por meio dos ensaios do Carpeaux. Não me limitei somente aos livros dele que estavam publicados, mas também fiz muita pesquisa nos acervos da Biblioteca Nacional.
Eram textos que ficaram dispersos e se perderam no tempo porque só ficam acessíveis a pesquisadores, já que não estão publicados em livros. Essa foi a pesquisa da graduação. E no Mestrado eu fiz o mesmo, só que em vez da literatura russa, trabalhei com a literatura brasileira, porque me pareceu um enfoque novo a respeito do Carpeaux.
Conexão UFRJ: Como foi encontrar um livro como esse? Era algo que você buscava ou aconteceu por acaso?
André Rosa: Eu busco isso há muitos anos. Tem uma lista de livros que estou sempre procurando que são meio impossíveis de achar e esse era um deles. O Carpeaux, quando vem para cá, envia uma carta para Alceu Amoroso Lima falando um pouco da trajetória dele e menciona esse livro. Ele diz que é o único dos seus livros europeus − anteriores ao Brasil − que não havia datado e que ainda tinha alguma importância para ele. E era um livro escrito em holandês. Então, tinha duas dificuldades: da língua, pra gente, muito distante; e também porque era um livro denunciando a ocupação nazista da Áustria. Isso foi escrito na Bélgica e a Bélgica foi ocupada pelos nazistas. Esse tipo de obra era destruída. E tantos anos depois foi possível encontrá-lo em um sebo. Encontrei numa madrugada e comprei no dia seguinte.
Conexão UFRJ: Qual é a principal temática de Dos Habsburgos a Hitler?
André Rosa: Esse livro narra a ocupação da Áustria pelos nazistas. Por isso ele começa com a contextualização histórica do Império Habsburgo, da formação à queda. Depois, a obra fala um pouco sobre a chamada “Áustria vermelha” − momento no qual a esquerda chega ao poder no país, que eles chamam de “Viena soviética”. Em seguida, vem o chamado “austrofascismo”, que era o governo do Engelbert Dollfuss, chanceler da Áustria até 1933. Ele sofre um atentado nazista e o Kurt Schuschnigg assume no lugar dele em 1938. Embora fossem chanceleres de direita alinhados até com fascismo, eles não eram nazistas e são golpeados. Ou seja, são vítimas de atentados.
É interessante e trágico como Carpeaux narra como os nazistas ocupavam o estado não só por dentro, corrompendo as polícias, mas também a cultura. Ele diz que trabalhava no maior jornal de Viena e toda a ação de publicidade desse periódico estava ocupada por empresas alemãs, nazistas, naturalmente, que colocavam muito dinheiro e ocupavam os espaços de publicidade. Logo, é mais que um relato da queda de um país do qual nada sobra. É também um alerta pra gente estar sempre preocupado com o avanço de forças retrógradas que estão sempre por aí.
Conexão UFRJ: Como foi o seu processo de estudar holandês e fazer essa leitura?
André Rosa: Tinha que ser uma coisa rápida pra eu conseguir ler. Então, contratei um professor de holandês e eu não focava na fala, na compreensão. Aprendi a gramática bruta e fui mapeando ali o vocabulário específico do livro em torno de guerra, dentro daquele contexto. Assim, uma vez que consegui aprender os aspectos principais da gramática, bastou depois ir alimentando o vocabulário. E consegui um dicionário bom, robusto, de holandês. Foi muito trabalhoso, mas tudo isso me possibilitou fazer a leitura. Eu já tinha uma noção de alemão, então isso também ajudou muito.
Conexão UFRJ: E o que que você acha que muda após esse livro ser reencontrado?
André Rosa: Nos estudos do Carpeaux, a gente acaba preenchendo uma lacuna. Sabemos muito pouco sobre o Carpeaux da Áustria. Os livros europeus dele são muito pouco acessíveis. Sobrou pouca coisa. E encontrar uma obra tão importante − o último livro que ele publicou na Europa, com o relato pessoal de uma testemunha ocular, que era ele próprio −, ajuda a preencher uma certa lacuna que nós, até então, não conseguíamos acessar, com essa distância aqui do Brasil e outro continente e uma distância no tempo muito grande.
Conexão UFRJ: Por que na capa do livro o nome do autor aparece diferente?
André Rosa: No livro, consta a autoria de Leopold Wiesinger porque se trata de um pseudônimo. Carpeaux usou vários ao longo da vida: Leopold Wiesinger, Otto Maria Fidelis e até… Otto Maria Carpeaux. O nome dele, originalmente, era Otto Karpfen. No Brasil é que adotou Otto Maria Carpeaux, nome que usou até o fim da vida.
Conexão UFRJ: Existe algum movimento para que o livro Dos Habsburgos a Hitler possa ser traduzido e publicado aqui no país? Acha que há interesse?
André Rosa: Eu continuo estudando a língua holandesa, pretendo concluir a tradução dele, fazer um estudo e acho que isso geraria interesse, sim. O Carpeaux é um autor que tem um público leitor cativo aqui no Brasil e acredito que esse público se interessaria em ter acesso a um livro considerado quase que perdido. Agora a gente tem a oportunidade de tê-lo aqui em língua portuguesa.