PERSONAGENS
GOGOIA, a grávida, uma moça profana, uma fruta com sementes que germinam mesmo quando tudo em volta está deserto, chuva tropical que molha e refresca bem.
VANA, o coração valente, de mãos livres e firmes, carrega nos ombros o peso da injustiça e a força de um sol nos trópicos, não abaixa a cabeça nem desvia o olhar, risonha.
DULCE, a donzela esforçada, tem os olhos tranquilos de quem sabe seu preço, vulgar a vagar, ri e pode chorar, tenaz como uma lua a dançar com as marés.
MOLÓ, o elo do desejo com a realidade, também pode iluminar, no entardecer ou na aurora, incendiária, de pavio curto, bom vê-la viva.
AGENTE, o constatador do óbvio, braço fraco, mão inimiga.
CENSOR, a caricatura do arbítrio, o ridículo de uma pretensa autoridade, voz que não se ouve porque nada diz em um país em que até papagaios falam.
CENÁRIO
Torre das Donzelas, ala feminina do Presídio Tiradentes. Av. Tiradentes, 451. Bairro Luz, um breu. Distrito Bom Retiro, de estadia indesejável. Zona Central, às margens. São Paulo – SP.
(23°31’53.4″S, 46°37’57.6″W)
Esta estória tem a esperança de contribuir para uma história que seja efetivamente implacável com eles.
A cena inicia com Vapor Barato, música do álbum -Fa-Tal- Gal a Todo Vapor, tocando ao fundo. A música toca durante toda a cena, mas em diferentes volumes, representando o que se passa na cabeça da personagem Gogoia, como se ela fosse o eu lírico da canção.
No centro do palco, em uma cela, além de Gogoia, estão as presas políticas Vana e Dulce. Gogoia, grávida, vestindo um casaco de general e uma calça vermelha, cantarola para a barriga enquanto a acaricia. O cantarolar é interrompido pelo Agente, um agente da ditadura militar, que chega com uma mala e acompanhado de Moló, uma detenta novata. Ele deixa a mala e a moça na cela e chama Gogoia para acompanhá-lo, ao que ela sinaliza em resposta no exato momento em que se ouve o verso “Oh, sim” da música de fundo. Ao se levantar para ir embora, Gogoia é aconselhada pelas amigas.
AGENTE – Gogoia!
GOGOIA (em pensamento) – “Oh, sim”.
DULCE (enquanto Gogoia se levanta) – Meu bem, meu bem, você tem que acreditar em mim. Nem eles destruiriam um grande amor assim…
VANA (no ouvido de Gogoia enquanto a acompanha até a saída) – Conte ao menos até três. Se precisar, conte outra vez.
(Agente sai com Gogoia.)
VANA – E não se preocupe, companheira, se eles te torturarem a gente denuncia ao Estado brasileiro!
(Vana e Dulce gargalham. Moló ri com certo desconforto.)
VANA (a Moló) – Não se assuste, pessoa! Não vou dizer que a vida aqui pode ser boa, mas também não acredite que é preciso ser triste para ser militante. Mesmo se o que se combate é abominável.
DULCE – Seja bem-vinda à Torre das Donzelas. Meu nome é Dulce.
VANA – O meu é Vana. Como cê se chama, querida?
MOLÓ – Lúcia. (pequena pausa) Fui pega em uma emboscada da OBAN*. Meu grupo caiu como um cacho de uvas. Caiu inteiro.
DULCE – Ouvimos dizer… (lamentando) Mas dizem que pelo menos uma companheira incendiou os desgraçados com um molotov…
(Moló sorri dando a entender que ela é a companheira.)
VANA – Então aqui na Torre cê vai ser a Moló!
(Todas riem.)
MOLÓ – Confesso que, desde aquele dia, não sabia mais como era rir…
VANA – Ih, a ironia aqui começa no portão de entrada. Onde já se viu um presídio chamar Tiradentes?!
(Zombeteiam.)
MOLÓ – Então aqui é o céu que nos prometeram lá no purgatório e no inferno? (analisa a Torre de maneira reflexiva) Por que sobrevivemos?
(Silêncio.)
VANA – Acho que tudo começa exatamente aqui, na falta de resposta…
DULCE – Talvez devêssemos trocar a pergunta, ao invés de “por que sobrevivemos?”, temos de pensar sobre como sobrevivemos.
MOLÓ – Como?
(Pequeno silêncio.)
VANA – Várias coisas eu aprendi aqui na Torre. Eu aprendi que, mesmo quando a gente é frágil, é possível resistir. Somos capazes de fazer isso. Cê não pode ser personagem de uma epopeia só.
MOLÓ – Mas como?
VANA – Sem culpa. Nós temos que fugir disso, fugir de uma visão penitente da cadeia. Mesmo de fora da sociedade, numa situação de extrema repressão, cê pode construir. Não tô dizendo que é fácil. Tentar humanizar o absoluto desumano é uma tarefa hercúlea, mas, se conseguirmos, nós já os vencemos. Porque, de fato, nós criamos um ambiente em que eles não interferem, eles não mandam mais em nós.
DULCE (interrompendo a explanação de Vana e se dirigindo a Moló em tom de quase indiferença) – Não choro. Meu segredo é que sou donzela esforçada. Massacro meu medo. Mascaro minha dor. Já sei sofrer. Se me perguntam “como vai?”, respondo sempre igual.
MOLÓ – Como vai?
DULCE – Tudo legal. (pequena pausa) Tudo vai mal. Tudo é igual. Digo, não digo, não ligo, deixo no ar… Eu sigo apenas porque eu gosto de cantar. Não corro. Perigo! Estou longe e perto, sinto alegrias, tristezas e brinco. Tudo é igual quando eu canto e sou muda. Falo, não calo, não falo, deixo sangrar. Mas eu não minto. Eu minto porque mentir na tortura não é fácil. Diante da tortura, quem tem coragem, dignidade fala mentira. A sedução, a tentação de dizer a verdade é muito grande…
MOLÓ – Então como…
DULCE (interrompe continuando sua divagação) – Tente! Cante! Não cante! Não conte pra eles! Conte comigo! Não fico parada, não fico calada, não fico quieta. Revido! Revido, porque é uma forma de me sentir como alguém que ainda resta aqui inteira. Mas, quando vão embora, movo meu rosto no espelho, minha alma chora.
MOLÓ – Então…
DULCE (interrompe continuando sua divagação) – Meu amor, tudo vai mal, tudo! Tudo mudou, não me iludo, contudo, se alguma de nós chorar, algumas lágrimas bastam pra consolar. É a mesma porta com trinco, o mesmo teto. A mesma lua a furar nosso zinco. Tudo em volta está deserto, tudo certo!
VANA – Tudo certo como dois e dois são cinco!
(Todas riem e em seguida silenciam por um instante.)
VANA – Mas só tem um jeito com o medo: cê tem de se enganar. Chega de estar presa. Nós não fazemos daqui de dentro um cárcere pra ninguém, isso é o que eles gostariam… Todas têm o direito de viver a sua vida aqui. Tente apagar este teu novo engano.
DULCE – Não quer? Não tente.
VANA – Tente usar a roupa que estou usando.
DULCE – Não quer? Não tente.
VANA – Tente esquecer em que ano estamos.
DULCE – Não quer? Não tente.
VANA – Essa sua camisa suja de sangue, rasgue, enxugue seu pranto.
DULCE – Mostre teu novo canto.
VANA – Escreva num quadro em palavras gigantes.
(Moló escreve na cela “Feliz o povo que não tem heróis”. Vana e Dulce seguem falando.)
DULCE – Se inteire da coisa sem haver engano.
VANA – Tente entender tudo mais sobre o sexo!
DULCE – Peça meu livro, querendo eu te empresto…
(Sorriem maliciosamente.)
MOLÓ – Eu quero ver de novo a luz do sol… que me brilha, acende, aquece e me queima.
VANA – Eu sou o sol. Ela é a lua.
DULCE – Não quer acreditar? Não acredite.
VANA – Mas assim nós estruturamos a cadeia. Afinal, o que é a prisão?
MOLÓ – Essa torre aqui?
DULCE – Não!
VANA – A prisão é o controle do tempo e do espaço. Define o que cê faz no seu cotidiano e como faz e te isola. A sua resistência aqui dentro da Torre tem de ser a luta cotidiana pr’ocê dominar o tempo e o espaço. Eles têm de ser seus e cê não pode se isolar.
MOLÓ – Como que não se isola? Estamos em uma Torre…
VANA – Estamos. Nós estamos. Não é só você que está. Nem sou só eu. Além do mais, eles deixam entrar diversas portas de saída. (levantando uma madeira e revelando diversos livros) Cê tem de ler!
DULCE – Falando nisso, chegou uma mala nova de livros que as famílias enviaram, né? Pega ela aí, Moló, pode até escolher o seu primeiro!
(As três se posicionam atrás da mala, Moló ao centro, e a abrem sem revelar seu conteúdo.)
VANA – Ah, não acredito…
MOLÓ – Enviaram isso?
DULCE – Tudo desatualizado.
VANA – Ninguém usa mais isso!
DULCE – Nossa! E a crise também é estética…
MOLÓ – E qual a utilidade disso para mulheres presas?
(Moló se levanta revelando um vestido de gala.)
VANA – Para mulheres presas eu não sei, mas a gente bem que poderia usar. Já estão aqui mesmo…
(Colocando um vestido na frente do corpo como se experimentasse.)
DULCE – Veio até uma bata… (em tom de lamento) Se tivesse chegado antes, Gogoia não precisaria ter usado aquele casaco nojento que emprestaram.
MOLÓ (a Vana, com deboche) – Esse blazer vermelho aqui é a sua cara. Para você usar quando for presidenta deste país!
Todas riem. Cada uma escolhe uma peça, colocam na frente do corpo e iniciam uma espécie de baile. A música de fundo, já no fim, fica mais alta, tocando enquanto elas dançam. Após alguns segundos de silêncio, Gogoia retorna com um bebê nos braços e o apresenta ao público. As demais detentas reparam a mãe com sua filha.
VANA – Puta que o pariu!
Um rastilho de riso toma conta da Torre. As detentas rompem o espaço delimitado da cela, onde ficaram circunscritas durante toda a cena, interagindo com Gogoia e o bebê. O Censor, um censor da ditadura militar, que estava o tempo todo disfarçado em meio ao público, interrompe a cena gritando da plateia.
CENSOR – Silêncio! Parem agora com isso! Ninguém pode falar a não ser quando for convocada pra dar depoimento! Todas têm que dar depoimento. Denunciar umas às outras. Degradar-se, humilhar-se, perder a dignidade. Renunciar de joelhos à condição humana. Voltem para a Torre imediatamente! Silêncio!
(Após alguns segundos, o choro do bebê rasga o silêncio imposto pelo Censor.)
VANA – Silenciar sobre os mortos, desaparecidos e torturados de ontem e de hoje nos acostumaria a silenciar sobre os mortos, desaparecidos e torturados de amanhã. É preciso não ter medo, é preciso ter a coragem de dizer.
(Luzes apagam.)
*OBAN: Operação Bandeirante, organização criada em 1969 pelo regime militar a fim de investigar e desarticular facções revolucionárias.
Héderick Allan
Estudante de Defesa e Gestão Estratégica Internacional na UFRJ. Conselheirista. Aguardando meu triste fim policárpico, sonho com o levante da Rainha do Meio-Dia. Combate ao inimigo.
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