A primeira favela do Brasil, localizada no morro de Santo Antônio, Rio de Janeiro, foi removida e o local demolido para dar espaço às reformas urbanas da década de 1920. A remoção de áreas favelizadas norteou a ocupação das cidades brasileiras até a década de 1970, quando se mudou o paradigma da habitação. Nesse momento, entendeu-se a necessidade de melhorias nos assentamentos precários sem remover os habitantes do local em que viviam, como clamava a Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara no slogan “Urbanização sim, remoção não”.
A transformação dessas áreas é assunto do livro Urbanização de Favelas no Rio de Janeiro, lançado neste mês pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Observatório das Metrópoles, vinculado ao Ippur/UFRJ, que retoma aspectos tratados em Urbanização das Favelas no Brasil, de 2022, em que se analisa o assunto em oito metrópoles brasileiras. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o país tem 13.151 aglomerados subnormais − como o órgão classifica as favelas − que comportam mais de 5,1 milhões de residências, segundo dados de 2019. O número exato de domicílios e habitantes nessas áreas pode ser ainda maior com a recontagem feita pelo Censo 2022, que não foi divulgada.
Parte dessas comunidades foi urbanizada entre 1970 e os dias atuais, como uma área da Rocinha no Rio de Janeiro, onde ruas foram alargadas e se combateu a tuberculose, e a Maré, o maior conjunto de favelas carioca, no qual a população foi realocada de palafitas para conjuntos habitacionais no entorno. Nesse contexto, políticas públicas, investimentos internacionais e a atuação dos movimentos sociais foram importantes para a mudança de paradigma habitacional. Contudo, em meio à Ditadura Militar, manifestantes foram “muito massacrados e perseguidos; algumas lideranças foram presas e desapareceram”, segundo Adauto Cardoso, professor do Ippur e um dos organizadores dos livros.
Moradia como direito constitucional
A Constituição Federal de 1988 garante o direito à moradia, regulamenta a função social dos imóveis e define a possibilidade de adquirir propriedades por meio de usucapião. Esse instrumento possibilita que quem mora por cinco anos numa área que não seja dele possa requerer regularização, a menos que outra pessoa reclame a posse do terreno. O texto é um marco que impede juridicamente a remoção das favelas, apesar de a regularização fundiária ser um “nó” nas políticas de urbanização, como pontua o professor.
Antes mesmo dessas diretrizes federais, cidades como Belo Horizonte, em Minas Gerais, Recife, em Pernambuco, Santo André, em São Paulo, e Rio de Janeiro, analisadas em Urbanização das Favelas no Brasil, desenvolveram políticas de habitação e órgãos específicos para a urbanização de favelas. O pioneirismo na criação e na consolidação de mecanismos institucionais propiciou que esses governos municipais pudessem ser a principal linha de frente sobre o tema:
“As políticas de habitação federais dependem muito da atuação dos municípios, que precisam ter capacidade de técnica de gestão, porque vão subcontratar as obras, contratar uma empreiteira ou empresa de engenharia ou de arquitetura para fazer o projeto. A gestão disso, o gerenciamento da obra, a própria definição da contratação, a análise do contrato e a definição do projeto, tudo isso depende muito de uma capacidade política, institucional e técnica da prefeitura, principalmente”, destaca Adauto.
Outros municípios, como Curitiba, no Paraná, Fortaleza, no Ceará, e Campina Grande, na Paraíba, criaram programas para a urbanização de favelas a partir da década de 1980, mas foram afetados por questões políticas que descontinuaram os processos. Das oito cidades analisadas no livro, Pelotas, no Rio Grande do Sul, foi a que não desenvolveu experiência municipal independente do governo federal, tendo uma atuação pontual espelhada pelas ações da União.
Agenda internacional pela habitação
Desde a década de 1970, o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (Bid) e outras organizações internacionais buscaram investir na urbanização das favelas para reduzir a pobreza nos países periféricos que sofreram com a intensificação das desigualdades causadas pela globalização. Com isso, criaram parcerias com os governos regionais e o Banco Nacional de Habitação (BNH), criado em 1979, para pôr a agenda em pauta. Na década de 1980, o Banco Mundial deu recursos ao Projeto Recife, que objetivava reassentar populações que viviam à margem do rio Capibaribe, e, em 1990, ajudou na recuperação ambiental da Bacia do Guarapiranga e na urbanização de uma área de Salvador.
Décadas depois, o Ministério das Cidades, de 2003, e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), de 2007, foram criados para melhorar a infraestrutura das cidades. Eles ajudaram os municípios com obras iniciadas por meio da cooperação internacional. No Rio de Janeiro, o PAC destinou 279 milhões de reais para a urbanização de favelas no Complexo do Alemão, em Manguinhos e na Tijuca, além de moradias em Marechal Hermes pelo programa Favela-Bairro. A iniciativa buscava a urbanização integrada, trazendo para perto serviços básicos como saúde, educação, lazer e moradia adequada. O professor Adauto Cardoso acredita que a aliança entre o Estado e organismos internacionais deixou uma marca na urbanização das favelas:
“A característica mais marcante é a história da incompletude por causa dos muitos projetos que ficaram incompletos. Isso porque, por mais que essa questão tenha entrado na agenda e tenha tido recursos durante certo período importante, e seja em algumas prefeituras assunto presente, nunca é tão prioridade ao ponto de ter todos os recursos que seriam necessários”, destaca.
Desafios atuais
A capacidade de crescimento de favelas já urbanizadas é uma das questões que levam o professor a considerar a urbanização contínua das favelas brasileiras. Além disso, a reconstrução do Ministério das Cidades, extinto em 2019 pelo governo de Jair Bolsonaro e recriado por Luiz Inácio Lula da Silva neste ano, o financiamento federal para a habitação e a capacitação de profissionais municipais são alguns dos problemas de hoje.
*Sob a supervisão da jornalista Carol Correia.