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Dia Internacional Nelson Mandela: reflexões sobre o racismo à brasileira

Nesse 18 de julho, o Conexão UFRJ busca discutir sobre a realidade racial no país

Em 18 de julho de 1918, nascia em Mvezo, então União Sul-Africana e atual África do Sul, um dos maiores líderes da luta antirracista mundial. Rolihiahia Dalibhunga Mandela, ou Nelson Mandela, foi condenado à prisão perpétua em 1964 por ir contra o apartheid e permaneceu preso por quase 27 anos, tendo sido libertado em 1990. Mandela é conhecido mundialmente por sua luta contra o racismo e contra o sistema de apartheid na África do Sul. Em 2009, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o 18 de julho como o Dia Internacional Nelson Mandela, em homenagem ao legado do homem que ajudou a mudar a história da África do Sul e do mundo inteiro no que se refere ao racismo.

O apartheid foi um regime de segregação instaurado na África do Sul entre 1948 e 1994. Ele surgiu em uma sociedade que acreditava na supremacia branca e na consequente subjugação dos não brancos. Formalizou-se e institucionalizou-se como um sistema de segregação, mas não foi, na prática, uma novidade. Já existiam formas anteriores de separação que, entre outras ações, reservaram terras para brancos e proibiram negros de possuí-las, isolaram negros em reservas (naquilo que, posteriormente, veio a ser denominado de “homelands”) e limitaram o acesso do negro ao mercado de trabalho.

A instituição do apartheid teve como base o pensamento dos africânderes, grupo étnico da África do Sul, descendentes dos colonos calvinistas, principalmente da Holanda, mas também da Alemanha, da França e outros países europeus, que se estabeleceram na África do Sul nos séculos XVII e XVIII. Os africânderes seriam o único grupo capaz, e mais evoluído, para liderar todos os outros, na forma do segregacionismo. A consequência foi uma nação com muita desigualdade, o que gerou a crise do apartheid na década de 1980. O regime teve seu fim em 1994, com a eleição de Nelson Mandela para presidente.

Sistemas de segregação oficiais e o mito da democracia racial

A institucionalização de um sistema de segregação como aconteceu na África do Sul e nos Estados Unidos da América trouxe para a população desses países a ideia de que o racismo ali de fato existia, já que havia, claramente, normas e leis conhecidas por todos que segregavam e demarcavam os lugares de negros e brancos. No Brasil, a história do racismo e da concepção sobre o modo de convivência entre diferentes raças foi bastante diferente. Por aqui, por não ter havido leis que impedissem explicitamente os negros de terem acesso a lugares, ou até mesmo de se sentarem em ônibus, como ocorria nos Estados Unidos, fomos levados a acreditar que vivemos em um paraíso racial. Muitos acreditam e propagam ainda hoje a ideia de que no Brasil não existe racismo e que todas as raças convivem em uma situação de paz e união.

Entre os pesquisadores que se dedicam a pensar o racismo no Brasil, estão Cida Bento e Muniz Sodré. Eles estiveram reunidos no II Encontro Epistemologias da Comunicação, organizado pelo Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária (LECC), da Escola de Comunicação (ECO). Maria Aparecida da Silva Bento, ou Cida Bento, é doutora em Psicologia, defendeu em 2002 a tese intitulada “Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público”. É conselheira e uma das fundadoras do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert). Foi professora visitante na Universidade do Texas e, em 2015, foi eleita pela revista britânica The Economist uma das cinquenta pessoas mais influentes do mundo no campo da diversidade.

Muniz Sodré é doutor em Letras (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor emérito da Escola de Comunicação (ECO/UFRJ), exerceu de 2009 a 2011 o cargo de presidente da Fundação Biblioteca Nacional. É imortal da Academia de Letras da Bahia. Autor, entre outras diversas obras, de Pensar Nagô e Claros e Escuros.

Cida Bento e Muniz Sodré debatem, sob mediação de Rosangela Malachias, as obras O Pacto da Branquitude e O Fascismo da Cor, de suas respectivas autorias | Foto: Fábio Caffé (SGCOM/UFRJ)

O encontro entre os dois dos mais importantes intelectuais negros da atualidade aconteceu no dia 11/7, na Casa da Ciência. Em um auditório lotado, majoritariamente por pessoas negras, Cida e Muniz presentearam a plateia com discussões acerca da realidade racial do Brasil. A mesa foi mediada por Rosangela Malachias, professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e coordenadora do grupo de pesquisas Afrodiásporas − Núcleo de Pesquisa sobre Mulheres Negras, Cultura Visual, Política e Educomunicação. Rosangela abriu sua exposição com falas sobre a dificuldade de estudar intelectuais negros, principalmente no campo da comunicação. O objetivo do encontro era debater os mais recentes livros de Cida e Muniz, O pacto da branquitude e O fascismo da cor, respectivamente.

Muniz foi o primeiro entre os palestrantes a falar, e explicou que vê uma proximidade entre o seu livro e o de Cida. Segundo ele, o pensamento social brasileiro focado nas estruturas esqueceu o negro e a questão racial. “Eu tenho 80 anos. Grande parte da minha vida eu vivi na academia e na imprensa. Durante muitos anos, a imprensa dizia nas redações que não existe racismo no Brasil e que isso era coisa de sociólogo americano”.

O intelectual destacou também que a esquerda brasileira sempre foi muito reacionária em relação às questões raciais, em todos os pontos. Em seu novo livro, Muniz Sodré traz à tona a discussão de que o racismo não é estrutura, pois estrutura requer condições que não são inerentes ao racismo.  É nesse sentido que ele estabelece a relação com o livro de Cida Bento. Para ele, o pacto da branquitude, conceito que a autora trabalha em sua obra, também não é estrutura, é uma forma. “É um pacto mesmo, porque está implícito, ele é subjacente às relações sociais”, afirmou. Muniz também desenvolveu o pensamento de que, até a escravidão, o que era feito era uma apropriação do corpo do negro para fazê-lo trabalhar. Com a abolição, a apropriação se dá pelo sentido do corpo negro, contra a qual é mais difícil de lutar. De acordo com o professor, “o que há no Brasil é a repulsa da cor, pelo pacto  da branquitude”.

Cida Bento e Muniz Sodré I Foto: Fábio Caffé (SGCOM / UFRJ)

No livro O pacto da branquitude, Cida Bento reflete sobre a posição ocupada pela branquitude nas relações raciais no Brasil. Segundo a autora, “não temos um problema negro no Brasil, temos um problema nas relações entre negros e brancos. Esse fenômeno tem um nome, branquitude, e sua perpetuação no tempo se deve a um pacto de cumplicidade não verbalizado entre pessoas brancas, que visa manter seus privilégios”. Esse pacto, implícito, nas palavras de Muniz Sodré, visa à autopreservação, ao afastamento da ameaça que o diferente apresenta para o universal. 

Em sua fala, Cida se definiu como uma pessoa otimista, pois, nos últimos anos, vem percebendo uma mudança no âmbito racial no Brasil, muito em função da agência da juventude das mulheres negras.  Para ela, as instituições no país vêm mudando porque não é possível ou aceitável que elas não mudem. Mesmo assim, a pesquisadora afirmou que seu ressentimento ainda aparece ainda e com muita raiva em determinadas situações, como quando as pessoas querem colocá-la “em seu lugar”, ou no lugar que elas esperam que a intelectual ocupe, um lugar de subalternidade. Cida também compartilhou com a plateia suas experiências no mercado de trabalho corporativo e sobre a criação do Ceert, uma organização sem fins lucrativos que, desde 1990, defende os direitos da população negra, em particular da juventude e das mulheres negras. 

O encontro entre Cida Bento e Muniz Sodré, em um auditório em que faltaram lugares para todos que gostariam de assistir, mesmo com tantas pessoas que ficaram em pé, mostrou a necessidade e a urgência de eventos sobre as relações raciais no Brasil. No Dia Internacional de Nelson Mandela, todos precisamos refletir sobre a realidade racial no Brasil e analisar quais caminhos devemos percorrer para alcançar a tão falada igualdade entre todos os cidadãos. Você pode assistir ao Encontro na íntegra no Canal do LECC/UFRJ