Nota da curadoria
Pela primeira vez, sentimos a necessidade de vir apresentar este texto que muito nos alegrou receber. Ele é escrito em português, mas tem algumas particularidades por apresentar uma linguagem bem específica da cidade de Luanda, Angola, onde se passa esta crônica. O leitor vai acompanhar conversas e conhecer a realidade de um motorista de uma van do transporte privado angolano, veículo que por lá se chama kandongueiro. Assim como esta, outras palavras podem parecer estranhas para quem não conhece o linguajar, por isso preparamos um glossário, que segue ao fim do texto.
Deixe-se adentrar nesta viagem e aproveite esta conexão literária!
Tassia Menezes
Curadora
***
A hora em que me levanto nem o despertador toma conta. Meu trabalho é levar pessoas ao trabalho e aos seus outros afazeres. O famoso taxista, dono do Hiace quadradinho, quer dizer, “dono” entre aspas, afinal também presta contas ao patrão.
Meu nome é Man Tony, 49 anos, morador do gueto Catambor, pai de seis e, para piorar, duas mulheres divididas por um muro. Isso sem contar as catorzinhas que tenho na via. Trabalho com o rapaz Chico de Vinte, com sonhos de se tornar um empresário, mas com os obstáculos desta vida moribunda que temos. O miúdo nem conseguiu terminar o ensino médio. Levanto às 4h, faço a revisão do carro e depois vou buscá-lo em sua casa. É assim durante os três anos que estou com este carro. Vias esburacadas, passageiros chatos, policiais gasoseiros dificultam o nosso trabalho. Madeira, Calemba 2, Golf 2, Mutamba − são as rotas mais frequentes que fazemos.
− Kota, embora, meu velho!
Era o meu cobrador às 5h, me esperando na porta da sua casa.
– Vamo, sai dessa, meu puto! A porta está aberta, ferraste numa?
De tanto passar o dia com esse miúdo, aprendi a falar igual.
– Velho, to mbora numa, é só a velha que tá malaike. Tô a lhe perguntar qual a dor, num tá a saber se explicar, tá a ver, né?
– Sem makas, dengue. Então, na hora do almoço, vamos vir lhe ver, yeah?
– Sem crises, kota. Fechou!
Depois da revisão e da pequena conversa, entramos na via.
– 1° de Maio! Dinheiro trocado, família! 1° de Maio! Dinheiro trocado, família!
Assim, gritava incansavelmente o ndengue. Mas pela hora há sempre inúmeras pessoas indo, que o carro encheu no mesmo minuto. Assim, começava mais um dia de trabalho. Do meu retrovisor conseguia ver todo mundo, desde pequenos empresários, faxineiros, jardineiros e porteiros. Todos vão garantir o pão. Era comum alguns falarem ao telefone, e outros simplesmente teclando.
No banco da frente, subiu um galã com o seu iPhone 13 Pro Max, deixando uma mensagem para sua amada, que ainda estava a dormir quando ele saiu de casa:
– Querida, bom dia! Já estou a caminho do trabalho, hoje apareceu um táxi muito cedo.
Ainda no retrovisor, vi uma kitandeira com a sua banheira atrás do seu negócio. Parecia não indo muito bem pelo rosto de preocupação e, como o meu sexto sentido não falhava, falei com o meu gerente para não cobrá-la. Claro, usando o nosso código de estrada. Quando ela desceu, de tanta felicidade, agradeceu.
Os primeiros passageiros começaram a descer no Shopping Shoprite do Palanca. Chegamos no 1° de Maio antes das 7h30 e alguns já estavam apressados para o trabalho. Aí, os famosos lotadores já faziam das suas, cobrando para encher o carro e cobrando pelo espaço. Com o tempo, esses lotadores ficaram organizados e até têm associações junto da Associação dos Taxistas de Luanda.
Em segundos, o carro já estava lotado. Nunca havíamos começado assim o dia. Íamos para Calemba 2, outra viagem longa e, daí, Vila de Viana e depois Estalagem. Assim, poderíamos almoçar em casa do meu ndengue. Tudo para fazermos companhia à velha dele.
Viagem tranquila, sem sobressaltos, até que de repente um deles ao telefone começou a gritar:
– Minha obra deve ser acabada ainda este mês, você anda desviando o dinheiro do material de construção e hoje estou indo fiscalizar!
Percebemos que ele falava com o seu pedreiro dos desvios que tem sofrido.
– Cansei, vou colocar todos na cadeia, como que pode? Dou 300 mil e só encontro material de 100 mil! Isso é justo, família?
Sem darmos conta, afinal já tinha desligado e estava a falar com todos nós:
– E então, não respondem?
– Sim, sim… Há muitos burladores por aí, eu mesmo já passei por isso. A minha casa era suposto fazer em seis meses, mas foi prolongado em dois anos. O cão, afinal, metia na obra dele.
Naquele momento, todo mundo começou a rir dentro do carro.
– É verdade, família! Rrhh, esse nosso país só Deus na causa, yeah!
Quase 8h e o trânsito na cidade já era visível. Liguei o rádio para saber quais alternativas teria quando a coisa piorasse. A rotunda do Camama era uma das zonas mais difíceis de circular naquela hora. Ainda assim, arrisquei e fui com tudo. Chegando lá, o inesperado aconteceu: trânsito em todo lugar, centenas de carros parados, sem ninguém saber o motivo. É nestes momentos que a conversa torna-se mais fiada, parecendo um grupo do WhatsApp. Falam de tudo, desde trabalho, família, religião, política.
Alguém se atreveu a dizer que Angola é um país democrático e todos pararam as suas conversas e atacaram de maneira inescrupulosa aquele pacato cidadão. Foram tantas ofensas que ele não aguentou a pressão das kitandeiras, estudantes e trabalhadores informais e teve que descer do veículo, longe do seu destino.
Horas depois, o trânsito voltou ao normal. Seguíamos para a estalagem prontos para o almoço na dona Xica, mas, como estava incomodada, não conseguia fazer a comida. Quando chegamos com algumas compras do mercado, colocamos as mãos na massa, literalmente. Um calor de 35°C tornava inevitável um funge com molho de berinjela e frango assado. Cozinhamos, falamos sobre diversas coisas e notamos a importância daquele tipo de convivência entre nós. A mãe não me parecia doente, parecia-me apenas alguém que precisava de companhia, porque, logo que nos viu, os seus olhos não paravam de brilhar.
O almoço estava tão bom que esquecemos que tínhamos que voltar a trabalhar e, pela primeira vez em três anos, não voltamos a trabalhar depois do almoço.
GLOSSÁRIO
Banheira: bacia que serve para tomar banho.
Catambor: um bairro da periferia de Luanda.
Catorzinhas: novinhas.
Cobrador: ajudante do taxista.
Dengue/ndengue: criança, miúdo.
Ferraste: dormir.
Funge: comida típica angolana feita com fubá.
Hiace quadradinho: uma van da marca Toyota usada para transporte de passageiros.
Kandongueiro: veículos de transporte de passageiros; vans pintadas de branco e azul.
Kitandeira: mulher com o produto que vende sobre a cabeça.
Kota: mais velho.
Lotadores: jovens que ficam nas paragens ajudando os taxistas.
Malaike: pessoa ou coisa ruim.
Makas: problemas.
Policiais gasoseiros: corruptos, aqueles que pedem propina aos taxistas.
To mbora numa: tô bem
Pseudônimo de Ppedro, O Ppoeta, natural de Luanda, capital da República de Angola. Estudante de Letras–Língua Portuguesa na Unilab-Brasil. Pesquisador em literatura africana e poeta desde 2011, com diversas publicações em Antologias ao redor do Brasil. Cofundador do movimento Fome D’Vazio e membro internacional do Coletivo literário Terapia Lírica, escreve contos, poemas e crônicas, com preferência pelo estilo erótico.
Quer seu texto no Conexão Literária? Envie sua crônica, microconto, cartas, HQs ou outro gênero de até 10 mil caracteres aqui.