A crise humanitária e sanitária que atingiu os Yanomamis em Roraima evidencia o quanto os brasileiros ignoram o direito dos povos originários à terra e o quanto estes são importantes para a preservação do meio ambiente. Como dizia o líder indígena Sepé Tiaraju, que comandou os guaranis durante a Guerra Guaranítica, travada contra portugueses e espanhóis, em 1756, “Esta terra tem dono”. Não à toa, o 7 de fevereiro, data de falecimento do guerreiro, foi estabelecido para marcar o Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas. Criada pela Lei nº 11.696, de 2008, a data comemorativa foi uma conquista dos movimentos sociais e de direitos humanos de grupos minoritários.
Os povos originários sempre lutaram pelo direito à terra e contra a destruição da natureza para a própria sobrevivência. A ação do garimpo ilegal na Amazônia, por exemplo, contaminou os rios, obrigando os Yanomamis a se alimentarem de cestas básicas com sardinhas em lata e não mais pescarem nas próprias terras demarcadas. Primeiro foi a Mata Atlântica e agora é a Amazônia que está sendo destruída em prol de um pseudoprogresso civilizatório. Os povos originários são obstáculos à devastação. Em levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), por exemplo, as terras Indígenas aparecem como verdadeiros oásis de florestas. E a lógica é exterminar as populações para enriquecer pequenos grupos, os grandes senhores de terra ou os que estão por trás do garimpo ilegal e da extração madeireira.
Para Maria Isabel de Oliveira da Silva, da etnia Dessana, doutoranda em Antropologia Social do Museu Nacional, “há, sim, uma lógica contrária camuflada em discursos pseudoprogressistas. A ação civilizatória é uma bandeira levantada por muitos que querem a evolução ocidental à custa de povos originários. Essa ação traz graves consequências como o desmatamento desenfreado. Os povos originários são os guardiões da floresta e quem a conserva em pé, mantendo sua ancestralidade e espiritualidade a partir da natureza. É do meio ambiente que buscamos a cura, sem ela não existem vidas. Os povos originários não desmatam, pelo contrário, todos cuidam para que sua alimentação, sua medicina tradicional e outros elementos que circulam o corpo sejam garantidos. Portanto, preservar o meio ambiente faz parte da vivência dos povos originários”, afirmou.
Ruth Silva Torralba Ribeiro, professora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi/ UFRJ), lembrou-se da poesia escrita por Eliane Potiguara, intitulada “Brasil”, que em cada verso questiona o que fazer como índia submetida a diversos tipos de violência dos ditos “civilizados”, fazendeiros que a expulsaram do próprio território. “Eliane é uma mulher indígena na cidade e que resgata em poesia a ancestralidade, em especial das mulheres. Em suas palavras, ela expõe a força da violação”, destacou. Desde o primeiro momento, segundo a professora, houve um projeto de expropriação das terras, recursos e submissão dos povos originários. “Houve uma exploração do corpo, com a escravidão ou violação das mulheres. Hoje, a crise humanitária e sanitária dos Yanomamis é um exemplo atual dessa forma de pensar” evidenciou a professora.
De acordo com Isabel Dessana, há mais de 520 anos os povos originários estão nessa luta, mas parece que as pessoas ainda não conseguiram compreender a importância da defesa do meio ambiente pelos povos originários. “O que está acontecendo com o povo Yanomami é algo que existe há muito tempo. Os garimpeiros se instalaram há anos, mas os governos, nos últimos anos, nunca deram importância para a vida dos povos originários”, disse.
A ideia de civilidade está infiltrada em nossa cultura e relacionada ao progresso, mas não é bem assim, conforme avalia a professora do Neabi. “Na verdade, o que existe é o apagamento do massacre impetrado pelos europeus. Há o mito de que tudo ocorreu de forma amistosa, mas não foi bem assim. Havia mais de mil povos e hoje são 305, eram diversas línguas e o que houve foi um genocídio, que inclusive está estampado em nossa bandeira. A ideia de progresso está diretamente relacionada ao massacre ocorrido com os povos originários”, disse Ruth.
Valendo-se de outra poesia, a professora Ruth cita Márcia Wayna Kambeba, outra mulher que, por meio da literatura, conscientiza sobre a luta pela preservação e destaca a importância da água para a cura e proteção da biodiversidade, revelando sinergia entre a natureza e a vida. “Se garantirmos a demarcação dos territórios, não é só assegurar a posse da terra, mas também do bem viver naquela região. Manter a relação saudável com o rio, com as matas e com o ser indígena. Eles têm muito a nos ensinar sobre como podemos conviver melhor com a natureza”, acentuou.
É possível, porém, que algum dia os brasileiros compreendam a importância da luta dos índios pela terra. Para Isabel Dessana, os povos originários, enquanto existirem, têm muito a contribuir ao proteger a biodiversidade e a mãe terra. “Não são só os povos que ganham, mas todo o Brasil e o planeta. Na realidade, todo ser vivo é beneficiado. Estar no meio da floresta nos faz bem porque dela vem toda a força ancestral. Todos os biomas trazem vida em abundância para os seres vivos, pois todos respiram o mesmo ar e se beneficiam da natureza. Espero que, com as manifestações das lideranças indígenas femininas, a sociedade reflita sobre a importância da proteção do meio ambiente para o planeta e a valorização da luta dos povos originários”, concluiu.