Desde o princípio, a proposta dessa reportagem era fazer um perfil jornalístico com o intuito de pautar o 25 de julho, Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. A pessoa em destaque seria a primeira bailarina negra do Theatro Municipal: Mercedes Baptista, que quebrou paradigmas em vida e criou outras possibilidades de existência e criação cultural para pessoas pretas ao formar seu próprio balé folclórico e centralizar danças marginalizadas negras em 1952.
Como Mercedes havia falecido em 2014, iniciamos as buscas para encontrar alguém que tivesse convivido com ela e pudesse nos conceder a entrevista sobre sua trajetória. Conseguimos, então, agendar com Manoel Dionísio e Jurandir Palma para o mesmo dia. Ambos haviam feito parte do grupo de dança de Mercedes e, até hoje, mantêm a amizade. A conversa seria na casa dela, em Copacabana, numa quarta-feira à tarde.
Aqui, peço licença para falar um pouco mais sobre a dona Jurandir, mulher negra de 88 anos, nascida em Salvador e que tinha Mercedes Baptista como mãe, irmã e mentora. Baixinha, mas altiva, e extremamente cuidadosa, Jurandir tem uma história própria e outra que se entrelaça com a de Mercedes. Como seria para mim falar de apenas uma das duas?
Saí da entrevista, após ter feito um lanche que ela gentilmente preparou, pensando que não faria sentido escrever apenas mais um texto sobre Mercedes Baptista. Para isso, bastaria procurar informações sobre ela na internet ou em sua biografia. Como as palavras sempre acertam, decidi deixar que me guiassem de forma um pouco mais livre para que eu, outra mulher negra nesta tríade, pudesse fazer diferente desta vez: contar a história das duas a partir de um ponto de vista não necessariamente impessoal, e sim do “meu olhar”.
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“Não é possível que isso exista”, pensou Jurandir ao terminar de assistir a um espetáculo de dança com apenas pessoas negras no palco do Teatro João Caetano, no centro do Rio de Janeiro, nos anos de 1950. Encantada com os movimentos de dança afro e o coro que, inclusive, contava com uma Elza Soares de 16 anos, a baiana quis logo conhecer a professora-coreógrafa que havia feito tudo aquilo acontecer. Falou com Margarida, a senhora que a convidara para o espetáculo, e logo conseguiu um encontro com Mercedes Baptista, no camarim.
“Até que você é bonita mesmo, quero ver se você dança”, falou Mercedes no primeiro contato das duas. Na época, vendedora em uma loja de sapatos e moradora de Vigário Geral, Jurandir não tinha nenhuma experiência com dança, mas topou o desafio quando a dona da academia a convidou para fazer as aulas que aconteciam na Gafieira Estudantina, na Praça Tiradentes, em 1958. Dois anos depois, lá estava ela em turnê por Buenos Aires, na Argentina, com a companhia.
Para a senhora de 88 anos, Mercedes era como uma mãe, não apenas em virtude do acolhimento recebido, mas também de um registro oficial. Quando “Jura”, como passou a ser chamada após entrar no mundo da dança, tinha 25 anos, um acontecimento marcou sua vida e quase a fez desistir de persistir como bailarina.
Voltando para Vigário Geral após uma aula na Estudantina, um homem a abordou e, ao vê-la de batom e maquiagem, por causa das aulas de caracterização, afirmou que ela era prostituta e tentou violentá-la. Após gritos de socorro e a ajuda de uma senhora, Jurandir conseguiu se livrar da situação, mas não sem vivenciar um trauma que a fez comunicar na companhia que não voltaria a dançar.
Insatisfeita com a resposta e o desaparecimento de Jura por oito dias, Mercedes chegou ao bairro de Vigário Geral acompanhada por um carro de polícia, com o intuito de encontrar o assediador. Foi nesse mesmo dia que a coreógrafa informou à família de Jurandir que assumiria a responsabilidade financeira e legal dela, para que pudessem continuar trabalhando juntas: “Eu preciso muito dela”, reforçou a coreógrafa.
“Ficamos 55 anos juntas. Tudo que ela fez, eu fiz”, recordou Jura, não sem depois repetir a frase que mais ouvi naquela tarde: “Ela era minha mãe, minha amiga, minha mestra…”.
O legado da mestra
Jura e Mercedes estiveram juntas por mais de dez anos, dividindo o mesmo teto, no apartamento de Santa Teresa, enquanto a mais nova era preparada para a sucessão na liderança da companhia. Após o falecimento de sua mestra, muita coisa mudou e, hoje residindo em Copacabana, a eterna aprendiz acumula memórias, histórias e imagens da vida com a dança.
As fotos meio apagadas por um temporal recordam uma líder empenhada em conquistar o melhor para sua companhia. Com apenas pessoas negras no grupo e baixíssimo orçamento, o Ballet Folclórico Mercedes Baptista sofria preconceito de diferentes maneiras. Certa vez, em Curitiba, os componentes foram humilhados por causa das roupas que vestiam. Isso sem contar os que achavam que não teriam técnica ou esmero em suas produções, hipótese que caía por terra no momento das apresentações. “Não tinha financiamento, a gente quase não recebia. Era muito no amor. Só ganhávamos patrocínio quando viajávamos para o exterior”, explica Jura.
A própria Mercedes foi a primeira a sofrer o racismo na experiência pela qual é lembrada até hoje. A primeira bailarina negra do Theatro Municipal nunca teve efetivamente a oportunidade de dançar naqueles palcos. Atuou apenas como professora, algo que muito a ressentia, conforme conta Jura. “Dançar, ela nunca dançou. Passava atrás, com um buquê de flores. Eu não esqueço o que fizeram com ela, não! Qual é a negra que tem lá dançando agora?”, questionou a bailarina.
Como forma de realizar suas potencialidades artísticas, as quais foram privadas de se desenvolver, a coreógrafa criou o ballet, em 1952. O foco eram os movimentos de dança moderna e de dança afro. Essa, inspirada nos orixás, era resultado da pesquisa e convivência com o pai de santo João da Goméia, cujo terreiro a bailarina frequentava como amiga.
Da mesma maneira, em 1963, ao coreografar a comissão de frente da Acadêmicos do Salgueiro no Carnaval, Mercedes Baptista transformou um minueto, dança de salão clássica europeia, em dança negra, com o samba, para homenagear Xica da Silva. Em entrevista com o biógrafo da bailarina, Paulo Melgaço, ele conta que ela sabia fazer a leitura de danças populares, trazendo para o clássico, e vice-versa. “O Salgueiro era uma grande paixão. Lá ela é considerada uma revolucionária por trazer as aulas de passo marcado. Foi naquele ano que o Salgueiro se consagrou campeão”, revela.
Outra personalidade importante nesse nosso processo foi Manoel Dionísio. Presente na nossa conversa na casa de Jurandir, ele também tem uma relação com Mercedes e o carnaval. Além de ter sido integrante do balé folclórico, assim como a nossa entrevistada, hoje ele é um grande instrutor de mestres-salas e porta-bandeiras. “Eu tenho um orgulho muito grande do respeito que as pessoas têm por mim ao saber que sou discípulo da dona Mercedes Baptista. E tudo que eu tenho na minha vida foi graças a ela”, celebrou ele.
Jura completou: “É igual a mim”.
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Já em casa, pensando no desenvolvimento da reportagem, recebi uma mensagem da dona Jurandir perguntando se a entrevista tinha sido boa para mim. Não muito acostumada com todo esse cuidado ao longo do meu trabalho, até estranhei, confesso. Atenciosa como é, ainda me convidou para encontrá-la na VIII Marcha de Mulheres Negras do Rio, que acontece no próximo dia 31/7, em Copacabana: “Vamos nos encontrar em breve de novo, mesmo que não seja com entrevista: como amigas”, me disse, em áudio de mais de dois minutos, no qual também falava que havia se esquecido de me mostrar várias outras fotos que tinha separado para o dia da entrevista.
Fiquei refletindo se ela havia aprendido esse acolhimento com Mercedes e agora repassava adiante. Nesse “meu olhar”, com dificuldade ainda de nomear este texto, entendi que, tanto para ela quanto para Mercedes, a sensação era sobre se ver e acolher na outra a menina negra que um dia foi. Por aqui, uma torcida: que eu também possa ser acolhimento para a próxima que chegar até mim.