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Meio Ambiente

Boca ainda mais banguela

Projeto vai mapear os riscos que as mudanças climáticas representam para cidades do entorno da Baía de Guanabara

Nos primeiros versos da música “O estrangeiro”, faixa de abertura do álbum homônimo lançado por Caetano Veloso em 1989, há lembrança à referência depreciativa de Claude Lévi-Strauss à Baía de Guanabara, um espelho d’água de 380 km2 localizado no estado do Rio de Janeiro. O antropólogo a compara, devido à desproporção entre a baía oceânica e os afloramentos rochosos que a circundam, com uma boca banguela e sem encantos. Sob ameaça das mudanças climáticas, que acarretam elevação do nível do mar, chuvas torrenciais ou estiagem prolongada, qualquer analogia é mais sombria. Para aumentar os decibéis do grito de alerta, pesquisadores de diversas instituições, sob coordenação do professor Fabio Scarano, do Instituto de Biologia (IB) da UFRJ, elaboram um mapa com as principais vulnerabilidades para as cidades e populações que vivem no entorno dessa boca cada vez mais banguela.

Segundo a coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura (FCC), Tatiana Roque, que, na primeira semana de junho, participou da apresentação dos resultados parciais do projeto, o objetivo é despertar a atenção da sociedade civil, dos formuladores de políticas públicas (vereadores, prefeitos, deputados e governadores) e até de cientistas e pesquisadores. “A agenda das mudanças climáticas muitas vezes parece algo longínquo, mas sentimos cada vez mais próximo o impacto no cotidiano. O projeto é para integrar dados de modelos climáticos com os das populações locais”, disse ela.

O coordenador do projeto, Fabio Scarano, quer unir a modelagem de mudança climática regional considerando cenários de emissão definidos no Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (na sigla em inglês, IPCC – Intergovernmental Panel on Climate Change), com dados observacionais e depoimentos das populações que vivem nas cidades no entorno da Baía de Guanabara. O resultado preliminar do Mapa das Vulnerabilidades da Baía de Guanabara é fruto de uma parceria entre pesquisadores do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), do Laboratório de Métodos Computacionais em Engenharia (Lamce/Coppe) e do próprio  FCC. Os dados aqui levantados se somarão às informações do Baía Digital, uma plataforma do Lamce que monitora a Baía de Guanabara para coletar dados ambientais, sociais e econômicos da região.

Colaborador do recente relatório do IPCC, Lincoln Alves (Inpe) lembrou que as informações sobre as alterações no clima e no sistema socioecológico da Baía de Guanabara ainda são escassas, o que dificulta a elaboração de projeções e de planos para a mitigação ou contenção dos efeitos das alterações climáticas. Segundo ele, a partir de sua pesquisa com José Marengo e Felipe Alexandre (Cemaden), os efeitos das mudanças climáticas já são sentidos pela maior frequência de ondas intensas de frio/calor e de períodos longos de seca ou com chuvas torrenciais. “As informações ainda são muito pontuais e dispersas para avaliações sobre o futuro da região, e precisamos ter uma fotografia cada vez mais detalhada de como é o sistema socioecológico”, disse Lincoln, ressaltando a importância do trabalho para que tomadores de decisão e instituições responsáveis possam mitigar os problemas que surgirão.

O avanço dos instrumentos e tecnologia para análise das mudanças climáticas mostra que o cenário é cada vez mais preocupante, segundo Fabio Scarano. “Com o aprimoramento das ferramentas técnicas e metodológicas, algumas previsões que fizemos no passado, que em si já eram preocupantes, têm se demonstrado menos graves que o quadro verificado hoje em relação a desastres naturais”, afirmou. De fato, basta realizar uma simples pesquisa na internet para que se constate como, a cada ano, a Baixada Fluminense é cada vez mais afetada com as chuvas. A região tende a sofrer com os alagamentos não só por estar abaixo do nível do mar, mas porque a população desassistida, sem saneamento básico e coleta regular de lixo, despeja o que não é mais útil nos afluentes e rios Iguaçu, Sarapuí e Botas, os quais acabam assoreando a foz dos cursos d’água que deságuam na Baía de Guanabara.

Como destacou Ricardo de Moura, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur/UFRJ), que colabora com o Fórum no levantamento dos relatos e depoimentos dos moradores da região, a falta de planejamento urbano afeta a vida daqueles que moram em regiões periféricas. “As pessoas mais pobres acabam sendo as mais afetadas pelos fenômenos climáticos. Acho que a gente vive em um momento que precisa repensar com urgência o nosso modelo de sociedade – tanto a ação predatória do capitalismo absoluto quanto a questão de produção de lixo em larga escala”, frisou o pesquisador.

As previsões para o cenário até meados da década de 2050 apontam para inundações extremas, com um aumento no nível de mar em 20 centímetros para os mais otimistas e em até 1 metro para os mais críticos – o que comprometeria não só os municípios da Baixada, mas Itaboraí, São Gonçalo, e até a área onde está localizado o Aeroporto Internacional Tom Jobim. Magé e Guapimirim, embora ainda vulneráveis, são menos preocupantes por terem em suas costas alguns dos poucos manguezais remanescentes da baía.

Áreas afetadas por uma elevação do nível do mar de um metro na Baia de Guanabara no Rio de Janeiro | Fonte: https://www.climatecentral.org/

Com as tempestades mais intensas no futuro, milhões de pessoas serão afetadas, comprometendo a economia e, especialmente, a vida de toda a região metropolitana, a segunda mais importante do Brasil. “A gravidade da situação é clara já nas fases iniciais do projeto, mas os pesquisadores esperam agregar ao grupo novos estudiosos da baía que hoje atuam na UFRJ e em outras instituições. Claramente, a maior lacuna está na ação política, dos setores público e privado. E tal lacuna incide diretamente sobre as pessoas que vivem na região. Que a ciência possa levar à ação política”, concluiu Scarano.