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Quando estar nas ruas é um desafio

Conhece a história do bloco Se Benze Que Dá? A iniciativa vem da Maré e levanta questões que vão além do carnaval

“Vem pra rua, morador!” Entre 2005 e 2020, circulou pelo maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro o bloco de carnaval Se Benze Que Dá. Criado com o objetivo de ocupar o espaço público, o cortejo saía sempre um sábado antes e outro depois do feriado, atravessando os diferentes territórios da Maré e convidando a vizinhança a sair de casa.

O bloco promoveu o encontro e a diversão, mas também se tornou um espaço perene de crítica social. “Somos moradores falando para nós mesmos, para os nossos, dialogando a partir do samba, da música, da circulação pelas ruas. É uma espécie de bloco-protesto”, define Gizele Martins, mareense, jornalista e atualmente pesquisadora vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Por causa da pandemia e seus efeitos nas periferias, as prioridades dos foliões mudaram. Instrumentos, fantasias e adereços foram guardados e, mesmo que o “carnaval cancelado” de 2022 tenha tido o seu sucesso nas ruas (e nas festas particulares), o coletivo optou por manter o recolhimento de 2021. “Nos dois últimos anos foi consenso não colocarmos o bloco na rua”, reforça a jornalista que, desde março de 2020, está envolvida com a Frente Maré, campanha de enfrentamento da covid-19 e de combate à fome e à desinformação no território.

Nem a pausa, nem a imprevisibilidade do carnaval em meio à pandemia impediram nossa reportagem de buscar a trajetória do Se Benze. Nosso primeiro contato com o bloco foi em setembro de 2021, quando Fábio Caffé, fotógrafo e servidor técnico-administrativo da UFRJ, participou de uma entrevista coletiva com os extensionistas do Conexão UFRJ, falando sobre suas vivências na Maré. Era somente um treinamento para estudantes de Jornalismo e Letras, mas, ao nos depararmos com os relatos e as imagens feitas por Fábio (essas mesmas que estão aqui na página, dos desfiles de 2019 e 2020), decidimos seguir com o tema.

“O Se Benze Que Dá também é instrumento de luta política, cultural e educacional.”

Fábio Caffé

Ouvindo um aqui, outro ali, buscando textos, vídeos e memórias, percebemos que a história do Se Benze, além de ultrapassar a efeméride, é também a história de ativistas e pesquisadores de várias gerações. E podemos arriscar dizer que, embora seja uma criação mareense, o bloco tem relação muito estreita com a UFRJ.

Atravessar a rua, disputar a cidade

Seguindo itinerários diferentes a cada desfile e buscando contemplar a diversidade das 16 favelas e dos 140 mil habitantes do conjunto, o bloco ousa disputar o espaço público em um território marcado pelo conflito armado, pela rivalidade entre facções do tráfico de drogas e pelas ofensivas do Estado. Escolhendo a arruda – planta medicinal tão significativa para as culturas afro-ameríndeas – como símbolo de proteção, os foliões evocam ancestrais e brincam com a ideia do atravessamento, transformando o risco – de ser baleado ou coagido – em deleite – por, simplesmente, estar nas ruas.

Se, no cotidiano, o Caveirão – carro blindado utilizado pelas polícias militar e civil do Rio de Janeiro – manda o morador sair da rua, no carnaval, o Se Benze transmite mensagem oposta, encorajando as pessoas a estarem juntas novamente. Para Renata Souza, deputada estadual, egressa da UFRJ, moradora da Maré e porta-estandarte do bloco, a expressão “vem pra rua, morador” foi “um discurso direcionado a três atores sociais: os agentes militares armados, os civis armados e os mareenses desarmados”.

No livro Cria da Favela (Rio de Janeiro: NPC, 2018), resultado da tese de doutorado concluída na Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, Renata escreve sobre a rua como espaço primordial do vínculo, onde o mareense tece e fortalece suas relações. Nesse contexto, ela dedica algumas páginas ao Se Benze e o compreende como “um convite à insurgência”.

“É um grito que se contrapõe à lógica do medo e do silêncio que submetem cotidianamente milhares de favelados. É o grito que fica engasgado na garganta a cada operação policial, a cada troca de tiros entre varejistas de drogas, a cada vida ceifada.”

Renata Souza
Renata Souza, porta-estandarte do bloco, no último desfile antes da pandemia | Foto: Fábio Caffé (Coordcom/UFRJ)

Sinesio Jefferson Andrade Silva, historiador, etnomusicólogo, ex-morador da Maré e um dos pioneiros do bloco, também falou conosco sobre a condição de atravessar. Ele relembra os questionamentos feitos pelo coletivo, por volta de 2004, um pouco antes da criação do Se Benze: “A gente enfrentava há bastante tempo essa coisa de ter fronteira interna. Só para você ter um exemplo, a Maré chegou a ter linhas de ônibus que interligavam vários locais. Por conta dos conflitos, essas linhas acabaram sendo suspensas. Essa e outras situações que envolviam a circulação de pessoas nos desagradavam muito. A nossa visão era de que aquilo ali poderia ter alguma unidade a despeito das especificidades de cada território”.

Nosso entrevistado viveu na Maré a efervescência dos “favelados universitários” – como ele próprio definiu. Uma juventude que, por meio dos movimentos sociais, das organizações comunitárias, dos cursinhos pré-vestibulares populares e do ingresso no ensino superior, articulou saberes, fez reverberar seus incômodos e desenvolveu um pensamento engajado a respeito do próprio lugar. “Existia uma empolgação grande de muitos jovens que, acessando a universidade e novos conhecimentos, estavam pensando a vida cotidiana na favela, especificamente ali na Maré. E a gente estava com muitas conexões dentro e fora da favela”, conta.

Filho de uma servidora do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF), Sinesio passou a infância na Nova Holanda e a juventude na Vila do João. Fez o pré-vestibular no cursinho do Sindicato dos Trabalhadores em Educação (Sintufrj) e estudou na UFRJ da graduação ao doutorado, passando pela História, pela Música e pelo Planejamento Urbano. Sempre foi interessado por instrumentos musicais e, ainda no início dessa trajetória, se aproximou do grupo Musicultura, ação do Laboratório de Etnomusicologia em parceria com o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm). Conforme assinala o etnomusicólogo, essa foi também a base do Se Benze Que Dá.

“O bloco surgiu como uma ideia para a gente sair atravessando. Num certo tom de deboche – por que não? – e pegando emprestado essa coisa da licença carnavalesca, transformando o impossível em possível.”

Sinesio Jefferson

A musicalidade da Maré

O grupo Musicultura existe desde 2003 e tem a Maré como fonte primordial para a pesquisa e a extensão. De acordo com Samuel Araújo, professor da Escola de Música (EM), trata-se de um dos territórios mais musicais do Rio de Janeiro, “talvez, muito mais do que a Lapa”.

Em entrevista à TV Adufrj, em 2018, o professor comenta: “Como pesquisador, chegando à Maré, algo que realmente me impactou foi que, a qualquer hora do dia, você tem imediatamente essa impressão desse lugar hipermusical. A música acontece nos alto-falantes dos estabelecimentos comerciais, nos carros que transitam pela comunidade. E à noite começam os eventos musicais propriamente. São vários. Às vezes você tem um evento a 100 metros de distância do outro, com mais de mil pessoas participando, algo que a cidade nem toma conhecimento”.

Essa percepção fez com que o Musicultura, no curso de duas décadas e junto com a comunidade, realizasse estudos relacionados ao gosto e às práticas musicais; promovesse debates sobre a relação entre música e violência; incentivasse a realização de atividades culturais; e confirmasse a ideia de que muitos e plurais são os sons da Maré. No âmbito acadêmico, a parceria entre UFRJ e Ceasm garantiu a participação de mais de 100 estudantes e voluntários, a maioria do território, que produziram juntos dezenas de artigos científicos e ainda hoje contribuem para a elaboração de trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses.

Do ponto de vista político, o Musicultura cumpriu outro papel: servir como espaço de construção coletiva e cidadania ativa. Quem defende esse ponto de vista é a pesquisadora portuguesa Ana Flávia Miguel. Neste artigo, publicado na Revista Brasileira de Música, ela destaca trechos de entrevistas feitas com integrantes do coletivo nos anos de 2011 e 2012. Na quase totalidade dos depoimentos há o reconhecimento do Musicultura como espaço de formação crítica sobre a cidade. Um terreno fértil para a arruda brotar e o Se Benze florescer.

Integrantes do Musicultura compõem e comandam a bateria do Se Benze Que Dá. Na imagem, de 2019, o coletivo passa pela Vila do Pinheiro | Foto: Fábio Caffé (Coordcom/UFRJ)

A volta do samba-enredo

Um levantamento feito pelo Musicultura em 2006 identificou o forró, o rock e o funk como os estilos mais presentes na Maré. Na ocasião, em que foram ouvidos quase mil moradores da Baixa do Sapateiro e da Nova Holanda, um detalhe chamou a atenção: quando perguntados sobre “que tipo de música é mais ouvida na Maré”, 56% responderam “funk”. Quando perguntados sobre “que tipo de música você mais gosta”, apenas 3% responderam “funk”. Com base nesse dado, os pesquisadores passaram a discutir as possíveis relações entre música e violência, levando em conta o fato de que justamente os bailes funk são os mais reprimidos pelo aparato do Estado; logo, os mais associados à criminalidade.

Outro fator levantado pelos moradores foi certa preocupação com o arrefecimento do samba e, consequentemente, do carnaval. Em sessão da Cátedra Machado de Assis, realizada pelo Colégio Brasileiro de Altos Estudos (CBAE) em novembro de 2021, o professor Samuel Araújo comenta: “O grupo identificou como um dos primeiros problemas o desaparecimento do carnaval. Vocês já imaginaram isso? O carnaval de rua desaparecendo do maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro, mesmo com todo o imaginário mundial associando carnaval, samba e favela?”

Mas há uma memória carnavalesca na Maré, seja pela participação dos moradores em blocos que já existiram, seja pelo envolvimento com iniciativas ainda ativas (a exemplo das escolas de samba Gato de Bonsucesso e Siri de Ramos – antiga Boca de Siri). E isso fez com que diversos coletivos do território abraçassem a proposta do Se Benze Que Dá. Os ensaios do bloco foram se tornando espaços de formação musical e a escolha do samba-enredo ganhou contornos de debate público.

“A cada ano escolhemos uma temática, mas todas elas falando sobre o direito à cidade, algo que ainda não somos nem considerados como parte.”

Gizele Martins

Um exemplo dessa construção coletiva alinhada às vivências do mareense foi o tema escolhido em 2009: “muro da vergonha”. Na época, a prefeitura do Rio de Janeiro gastou R$ 20 milhões para construir uma “barreira acústica” entre a Linha Vermelha e as favelas situadas na divisa com a principal via de acesso ao Aeroporto Internacional Tom Jobim. O contexto era de “preparação” da cidade para os megaeventos que viriam anos depois: Copa das Confederações (2013), Copa do Mundo (2014) e Olimpíadas (2016).

O argumento da prefeitura, na ocasião, foi de que as placas reduziriam o ruído produzido por carros, ônibus e caminhões, mas isso não convenceu a população local, que nem sequer havia sido consultada. A reação veio. “Fizemos manifesto, vídeos, pautamos a imprensa e a cidade, mas pautamos principalmente a nossa favela, com reportagem no jornal O Cidadão, vídeo distribuído nas escolas e o samba”, expõe Gizele.

As composições coletivas também já tiveram como tema o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) dos Governos Lula e Dilma, o Caveirão, as remoções intensificadas nas gestões municipais de Eduardo Paes, a história do Rio de Janeiro. Outro exemplo é o samba intitulado Mareense no Mar, de 2006, cuja função foi valorizar a memória local e homenagear os primeiros moradores das palafitas do antigo Porto de Inhaúma.

O mareense no mar
Antes do chão veio habitar
Fincou a palafita no seu jeito de morar
Segue forte na luta
Sem se intimidar
Virando o jogo não se deixou murar
Derrube os muros do seu dia-a-dia
Maré sempre cheia seja noite ou dia

Mareense no Mar, samba-enredo de 2006, composição de Leo Melo.
Fantasias, adereços e abraços também representam o espírito coletivo do bloco. Na imagem, em primeiro plano está Gizele Martins | Foto: Fábio Caffé (Coordcom/UFRJ)

O que dizem as imagens

Foi em 2009 que um de nossos entrevistados se aproximou do Se Benze Que Dá, encorpando a “ala dos fotógrafos”. Fábio Caffé estudava Cinema na Universidade Federal Fluminense (UFF), vinha de uma vivência junto aos coletivos de fotografia da Maré (como a Escola de Fotógrafos Populares, onde foi aluno) e não demorou para se jogar na festa. “Eu já circulava pelo território, meus amigos moram na Maré e já conheciam o Se Benze. Foi um caminho natural até chegar no bloco”, disse durante entrevista concedida aos estudantes Sthefani Maia, Grazielli Fraga, Flávio Herculano, Giovana Gimenes e Maria Alice Freire, em setembro de 2021, para o projeto de extensão Laboratório Conexão UFRJ: Jornalismo, Ciências e Cidadania.

Duas semanas antes dessa coletiva, Fábio apresentou ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) uma dissertação de mestrado justamente sobre o Se Benze, somando sua experiência de mais de dez anos na Maré com imagens do bloco e entrevistas com foliões. Sua hipótese é a de que o Se Benze tem sido um espaço importante para a “sociabilidade” no território – ou seja, para que as pessoas se encontrem, mantenham seus laços e fortaleçam sua identidade com o lugar.

Para sustentar esse argumento, o pesquisador recorreu às imagens: tanto as feitas por ele, nos desfiles de 2019 e 2020, como as escolhidas por seus entrevistados, contemplando anos anteriores. “Todos nós sempre estamos lidando com imagens, independentemente de sermos fotógrafos ou não.” Na entrevista aos estudantes, Fábio reforçou o valor da fotografia como documento e síntese de histórias.

Em seu estudo, o pesquisador aplicou um método chamado “fotobiografia”, inspirado no trabalho da antropóloga Fabiana Bruno, em que os entrevistados são convidados a escolher imagens a respeito de determinada situação e, em seguida, narram o que foi vivido. A partir desse diálogo mediado, Fábio acessou a memória afetiva dos integrantes do bloco, refez trajetos e organizou mapas que demonstram como o Se Benze, de fato, atravessa a Maré.

Trecho cartografado a partir das memórias de um dos interlocutores da pesquisa | Imagem: Fábio Caffé (Coordcom)

O fotógrafo também identificou os elementos mais marcantes da experiência coletiva. Um deles é a mobilização. Como já mencionamos aqui, não haveria bloco se não fosse a articulação dos ativistas no território. Sendo assim, a luta por direitos perpassa por todos os recursos discursivos, do samba-enredo às fantasias. Na leitura de Fábio, o que simboliza esse potencial mobilizador são os cartazes, produzidos em oficinas realizadas antes de cada desfile. “Em alguns momentos a estética do Se Benze lembra a das manifestações. Pelos cartazes são veiculadas as mensagens”, analisa.

Outro elemento destacado pelo pesquisador é consequência do primeiro: o caráter coletivo da produção do bloco – antes, durante e depois do carnaval. “Os sambas, por exemplo. A gente pode falar que os sambas são resultado de uma ‘escrevivência’, usando um termo da escritora Conceição Evaristo. Ou seja, é algo feito pelos próprios moradores, que refletem sobre suas próprias experiências.”

Terceira e marcante característica do bloco é o protagonismo das mulheres. São as mães da Maré e suas crianças, por exemplo, as mais encorajadas a seguir o Se Benze e a ultrapassar as divisas entre as favelas. Elas também estão à frente da bateria, da evolução e da organização do bloco, levantando questões e pautando temas como a violência de gênero e o feminicídio.

Nesse sentido, nosso entrevistado lembra uma personagem ilustre: “Marielle teve papel central tanto na criação do Se Benze quanto na realização dos desfiles”. A vereadora Marielle Franco, brutalmente assassinada em 2018, também fez parte desse grupo de ativistas que descrevemos ao longo da reportagem. Em uma das fotografias de Fábio, é possível identificar a homenagem conferida a ela em 2019.

Segundo desfile do bloco Se Benze Que Dá 2019. Baixa do Sapateiro. Favela da Maré, Rio de Janeiro Janeiro, 09/03/2019

Quando retomar?

Em 2021, o bloco promoveu um “desfile virtual” em sua conta no Instagram, relembrando momentos marcantes da trajetória coletiva. Para 2022, há o anseio comum pela realização de um desfile fora de época, mas tudo dependerá da conjuntura e da pandemia. De todo modo, a troca entre os foliões permanece.

“Nossas atividades no bloco também servem como um grande encontro dos militantes que estão no cotidiano na Maré, fazendo algum tipo de trabalho. Uma vez por ano a gente se encontra para conversar e pautar aquilo que mais nos atinge”, salienta a comunicadora Gizele Martins. “Fato é que tem potencial aí”, conclui o historiador Sinesio Jefferson. A qualquer tempo, festa e luta reverberam.

Se Benze Que Dá! Pra passar (ô) Com este samba
Essa é a galera da Maré, meu amor
Só tem gente bamba.

Se Benze que Dá pra passar, samba-enredo de 2005, composição de Elizabeth, Leo Melo e Josias Lima.

*Esta reportagem é resultado das atividades do projeto de extensão Laboratório Conexão UFRJ: Jornalismo, Ciências e Cidadania.