Sempre sonhara com a liberdade
Mas a liberdade que me deram
Foi mais ilusão que liberdade
Os versos que inauguram o texto são de trecho do poema Protesto, de Carlos de Assumpção, considerado um dos pioneiros da literatura afro-brasileira. Aos 94 anos, foi agraciado com o título de doutor honoris causa pelo Conselho Universitário (Consuni) da UFRJ, o órgão máximo da instituição, no dia 10/2, na primeira sessão ordinária do ano, por unanimidade e por aclamação. O poema foi destacado pela reitora Denise Pires de Carvalho.
“Que seja liberdade de verdade [em alusão aos versos do poema Protesto]. Estou muito emocionada. Agradeço à Faculdade de Letras, ao Centro de Letras e Artes (CLA), à Comissão de Ensino e Títulos (CET) e a todos os conselheiros por este momento, por estar reitora no momento da concessão do título e espero que eu possa fazer a entrega o mais rápido possível e presencialmente. Cito esta frase de Carlos de Assumpção: ‘Mas irmão fica sabendo / Piedade não é o que eu quero / Piedade não me interessa / Os fracos pedem piedade / Eu quero coisa melhor / Eu não quero mais viver / No porão da sociedade’. Parabéns, Carlos de Assumpção! Parabéns à UFRJ, a todos os estudantes que tiveram a oportunidade de ter Carlos de Assumpção como professor e a todos nós que pudemos nos deleitar com a sua obra”, disse Denise.
Ativista da cultura negra de grande relevância para a história brasileira dos séculos XX e XXI, Carlos de Assumpção recebeu o título de Personalidade Negra, no 70º aniversário da Abolição, conferido pela Associação Cultural do Negro, em São Paulo. De acordo com o professor Alberto Pucheu, da Faculdade de Letras da UFRJ, é “um dos últimos elos vivos entre a escravização e o nosso tempo”. Suas obras, no entanto, ainda são desconhecidas por grande parte do público.
O poeta, professor do ensino fundamental e advogado, nasceu em 1927 no município de Tietê (SP). Assumpção vive desde 1969 em Franca, também no interior paulista, onde, na Universidade Estadual Paulista (Unesp), cursou duas graduações: Letras (Português-Francês) e Direito. Depois de exercer, na cidade de São Paulo, diversos empregos formais e informais, Carlos de Assumpção, antes de se graduar, concluiu o curso normal, o que já evidenciava seu interesse por lecionar no ensino fundamental público.
O novo doutor honoris causa pela UFRJ herdou da família o gosto por contar histórias. Ouvia do avô, Cirilo Carroceiro, beneficiário da Lei do Ventre Livre e analfabeto, histórias testemunhais da escravização, que se contrapunham ao que aprendia nos livros didáticos. Seu pai era analfabeto e também contador de histórias. A mãe, alfabetizada, era amante da poesia. Dedicava-se à escrita e ensaiava poemas com as crianças da Sociedade Beneficente 13 de Maio para que elas recitassem nas festividades negras. “Foi com essa família leitora de poemas, narradora, fabuladora e politizada, em que a transmissão oral da ancestralidade e da história íntima se confundia com a história política do país, que seu afeto, pensamento e imaginação se formavam, tomando gosto pela leitura com os livros que a mãe trazia da biblioteca da igreja para casa”, destaca o professor Alberto Pucheu.
A produção artística de Carlos de Assumpção é marcada por intelectuais negros do final do século XIX e início do XX, como Luís Gama, Machado de Assis, Cruz e Sousa e Lima Barreto, por exemplo. Não tão conhecido no Brasil, Assumpção angaria espaço na Europa. Na França, nos anos 1960, a revista francesa Présence Africaine, publicada pela Sociéte Africaine de Culture, número 57, apresentou artigo dedicado à nova poesia do mundo negro nos idiomas francês, inglês, espanhol, português e holandês, com destaque para Carlos de Assumpção dentre os escritores brasileiros.
“Carlos de Assumpção se distinguiu pelo saber e pela atuação em prol das artes, das letras, do pensamento, da ética e da política, sendo um referencial nacional e internacional no engajamento dos movimentos sociais negros, movimentos esses que, no passado e na atualidade, configuram-se como essenciais e relevantes para a sociedade brasileira”, disse o professor Fábio de Souza Lessa, relator do processo.
“Tal concessão a um poeta da envergadura de Assumpção e ainda pouco reconhecido no contexto nacional, a um descendente de escravizados que sempre atuou em movimentos sociais que lutam pelos direitos e pela visibilidade dos grupos de negros no país e a um professor dedicado ao ensino fundamental público pode representar (…) uma reafirmação da UFRJ pela defesa dos movimentos sociais que preservam a cultura, a relevância e a valorização dos negros em nossa sociedade frente aos preconceitos às minorias tão peculiares no Brasil”, afirmou Lessa.