Em 14 de agosto de 2021, mais um terremoto de grande magnitude (7,2) atingiu o Haiti, deixando mais de 2 mil mortos e 30 mil desabrigados no país da América Central. Em 2010, situação similar aconteceu, com a taxa de óbitos registrada acima de 200 mil pessoas. Num cenário em que grande parte da população haitiana se encontra em situação de vulnerabilidade social, sem acesso à moradia digna, água encanada, energia elétrica e a saneamento básico, esses desastres naturais têm impactos ainda maiores.
Foi com o intuito de tentar romper o ciclo de miséria para sua comunidade que Jac Ssone Alerte, engenheiro haitiano formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, retornou ao Haiti e fundou a ONG Village Marie. A organização busca fazer com que as pessoas da comunidade, junto com a equipe de Jac Ssone e sua orientação, construam suas próprias moradias, em regime de mutirão. O objetivo é que todas as famílias tenham suas casas construídas e, para isso, a comunidade toda se une na edificação de cada imóvel. Eles são entregues priorizando aqueles em situação de maior vulnerabilidade.
O Haiti, em 2019, era o 170° no ranking de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), posição que demonstra a baixa qualidade de vida da população, que tem renda per capita de cerca de 1.170 USD ao ano, o que equivale a cerca de 540 reais por mês. Além disso, por estar localizado em região de alta instabilidade tectônica, o país tem um histórico de terremotos que deixam consequências por anos a fio.
Sem apoio do governo, a população busca soluções como pode, realizando as próprias construções, sem apoio de profissionais e com poucos recursos. Se os materiais de construção básicos são muito caros − um saco de cimento custa 12 dólares, cerca de 70 reais −, os antiterremoto são ainda mais inacessíveis, tornando impossível prevenir os impactos das catástrofes por conta própria. Segundo Jac Ssone, a falta de planejamento da maioria das construções no Haiti é um risco absurdo. “Elas não passam por nenhum tipo de planejamento ou supervisão de um engenheiro e arquiteto. Muita gente constrói de qualquer jeito, e aí muita gente morre. O governo vê e não faz nada. Não tem fiscalização”, lamenta o engenheiro.
Para sair desse ciclo de materiais inacessíveis, as construções no Village Marie utilizam o tijolo ecológico. A tecnologia, que está no mercado há anos, busca tornar qualquer solo viável para a produção de tijolos, utilizando o que está disponível no próprio local da construção, estratégia muito mais barata do que investir na compra de materiais prontos. Jac Ssone defende que a inovação está em tirar essa ferramenta de dentro das paredes da academia e apresentá-la a pessoas comuns.
A fabricação do tijolo ecológico se dá a partir de uma correção das porcentagens das propriedades do solo. No Village Marie, isso acontece na própria comunidade e é realizado pelos próprios moradores, que aprendem o passo a passo para que a habitação seja segura e construída de forma responsável. Infelizmente, o tijolo ecológico não é um material antiterremoto. No entanto, as estruturas das casas, pensadas por engenheiros, tentam diminuir o prejuízo da falta de materiais próprios para minimizar os impactos dos sismos frequentes no país.
Hoje, o Village Marie já concluiu duas casas, do total de 15 famílias, além de já ter ultrapassado suas pretensões iniciais. Antes, com foco apenas na moradia. Atualmente a ONG abrange também projetos de educação, saúde, primeiros socorros e outros. Jac Ssone comentou, em entrevista ao Conexão UFRJ: “A grande inovação do Village é que nós fazemos um centro de inovações sociais”. Inclusive, já existem propostas que visam à geração de renda para a comunidade, como o galinheiro, por exemplo: o excedente dos ovos produzidos é vendido e a renda é distribuída entre as famílias, com parte sendo reinvestida na manutenção e no aprimoramento do projeto.
“O Village é uma tentativa de construir uma utopia de uma cidade em que a gente quer viver. São 15 famílias, cada família vai ter um negócio. A porcentagem é dividida e a parte do Village vai ser reinvestida para compra de material, manutenção de tubulações etc. Isso funciona como um negócio social, para gerar lucro e aprimorarmos o sistema”, explicou o fundador da ONG.
Intercâmbio e transformação
O haitiano Jac Ssone Alerte veio para o Brasil cursar Odontologia na UFRJ e voltou para o seu país formado em Engenharia Civil, buscando melhorar as condições de vida da comunidade em que nasceu e cresceu: a Don de l’Amitié, localizada na cidade de Duchity, a oeste da capital, Porto Príncipe. Na época, a comunidade não tinha água encanada e era necessário percorrer 5 quilômetros para encontrá-la e levá-la para casa em baldes. Não havia energia elétrica e a população morava em cabanas, a 3 quilômetros das escolas.
Desde que retornou ao Haiti, com apoio de alguns patrocinadores e engajamento dos moradores, o engenheiro conseguiu levar água encanada à comunidade e construir uma praça em que a população tem acesso à energia elétrica e pode recarregar aparelhos eletrônicos, por exemplo. O início das obras demorou, pois houve desconfiança e resistência para que todos aderissem, mas, após convencê-los, o processo de transformação tem sido em conjunto.
“O grande projeto de transformação começa com a motivação das pessoas. Foram seis meses de formação até começarmos as obras, criando o elo da confiança na comunidade. Nós empoderamos as mulheres enquanto damos poder para cada pessoa na linha de produção. Tudo isso utilizando o tijolo ecológico como ferramenta”, celebra Jac Ssone.
Este texto é resultado das atividades do projeto de extensão “Laboratório Conexão UFRJ: Jornalismo, Ciências e Cidadania” e teve a supervisão da jornalista Tassia Menezes.