Neste mês, a cantora Anitta, conhecida nacional e internacionalmente pela sua trajetória no funk e na música pop, publicou uma foto com o seu babalorixá em cuja legenda estava escrita a seguinte frase: “encerrando o ano”. Pouco tempo depois, as redes sociais da artista receberam uma enxurrada de comentários pejorativos, os quais afirmavam que sua fama seria explicada por sua religião, em uma tentativa de diminuí-la. A artista é candomblecista com cargo de ekedi, dado a mulheres que têm a responsabilidade de cuidar dos orixás.
Atitudes como esta, direcionada a uma das cantoras mais conhecidas do Brasil, mostram como a intolerância religiosa está presente no país, embora o Brasil seja constitucionalmente considerado laico, e esse tipo de preconceito seja crime. No entanto, apesar de o Disque 100 ser responsável por receber e registrar denúncias relacionadas aos direitos humanos, o setor não tem divulgado dados a respeito desse tipo de ataque em seus últimos relatórios anuais.
O Brasil sempre foi um país religioso. Desde sua concepção, foi formado por estruturas políticas que tornaram a Igreja Católica parte do Estado, tanto no Período Colonial quanto no Império. A religião fazia parte da tomada de decisões legislativas e judiciárias e até mesmo das ações que justificavam ataques a populações inteiras, como a indígena e a africana.
A laicidade do Estado só passou a ser cogitada com a Proclamação da República, em 1889, e foi implementada oficialmente no Brasil apenas em 1890, com o decreto 119-A, o qual tornava proibido à entidade federal e aos estados expedir leis, regulamentos ou atos administrativos e privilegiar pessoas levando em conta alguma religião. Ainda assim, passados mais de 100 anos e tendo essa separação garantida na Constituição de 1988, ainda são vistas interferências religiosas na política.
Em entrevista ao Conexão UFRJ, o babalawô e professor de História Comparada da UFRJ Ivanir dos Santos afirmou que a laicidade do Estado brasileiro é mais uma formalidade do que uma realidade, uma vez que nos tribunais e órgãos públicos, por exemplo, são mantidos símbolos religiosos católicos, como crucifixos. Além disso, ele reforça que é inegável a ligação entre intolerância religiosa e racismo quando se trata das religiões de matriz africana. “Os neopentecostais transformaram em atitude social o seu discurso público, a sua narrativa pública que demoniza os grupos afro-brasileiros”, completou o professor.
Muito presentes na mídia, os grupos neopentecostais são caracterizados pela necessidade de propagarem sua fé massivamente, por isso são proprietários de diferentes veículos de comunicação, como canais de televisão, jornais e rádios. Além de acreditarem na sua visão de mundo como a única digna de salvação, eles veem na prosperidade econômica uma resposta de Deus. O pastor e professor Ariovaldo Ramos, coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, explica que, para esses grupos, a fé vira instrumento, o que passa a ser quase um poder sobre Deus: “Se o fiel souber exercer a sua fé, a trindade não terá outra possibilidade senão atendê-lo”.
O último censo realizado pelo IBGE, em 2010, constatou um aumento da população evangélica de 15,4% para 22,2% em um período de dez anos. Desses 22,2%, cerca de 60% se declararam pentecostais ou neopentecostais. Para Ariovaldo, existe um grande crescimento das religiões pentecostais. Já os neopentecostais crescem, sobretudo, em visibilidade. Ele explica que esses grupos, majoritários entre os evangélicos, não experimentaram o dito estado confessional, no qual existe uma religião oficial, e a consequente perseguição religiosa. Isso pode ajudar a entender a tentativa de retomar esse formato, porém agora com as religiões evangélicas no poder.
Tanto o pastor quanto o babalawô veem como um perigo esse movimento de hegemonia evangélica. Enquanto Ariovaldo acredita que esse sonho de determinados grupos pode se tornar um pesadelo, Ivanir defende que, caso essa tentativa fundamentalista permaneça, o futuro de todos os outros grupos religiosos e não religiosos será em busca de defesa da liberdade, da democracia e da laicidade do Estado.
Desde 2008, no 3° domingo de setembro, em Copacabana, acontece a Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa, evento que vem se firmando, entre várias religiões, como um ato em prol da tolerância. “É isso que eu espero do futuro. Somente o estado laico, com respeito à democracia, à diversidade, ao direito das liberdades, é capaz de conduzir os grupos religiosos e não religiosos”, defendeu ele.