Em trabalho liderado pelo Museu Nacional (MN), pesquisadores descreveram uma nova espécie de dinossauro brasileiro: o Ypupiara lopai. A descoberta foi publicada no periódico científico Papers in Palaeontology no final de junho, mas o achado data das décadas de 1940-1960, a partir de explorações paleontológicas na cidade de Peirópolis, no Triângulo Mineiro. O fóssil foi descoberto pelo paleontólogo Llewellyn Ivor Price e seu ajudante Alberto Lopa – cujo nome inspirou o epíteto específico da espécie.
De acordo com Arthur Brum, pesquisador do Departamento de Geologia e Paleontologia do Museu Nacional, foram encontrados dois fragmentos do fóssil: uma maxila com três dentes implantados e a região inferior da mandíbula. Na época da descoberta, até por uma questão do pouco conhecimento sistematizado sobre o assunto, o material não pôde ser diagnosticado como um grupo mais específico. Assim, o fóssil permaneceu classificado como “vertebrado indeterminado” por quase 80 anos, sob curadoria do Museu de Ciências da Terra e, posteriormente, do Museu Nacional, ambos no Rio de Janeiro.
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Foi somente em 2017-2018, a partir da evolução do conhecimento científico e dos diferentes métodos para vislumbrar uma sistemática mais conhecida nessa área, que Arthur e os outros coautores do trabalho revisitaram a coleção e identificaram que o fóssil tinha características que poderiam ser diagnosticadas como parte de um grupo mais inclusivo.
“Quando vimos o fóssil, inicialmente não chegamos a falar em espécie nova, mas a ideia era diagnosticá-lo de forma mais específica. E foi um processo de descoberta, de construção de hipóteses. Toda espécie que leva um nome é uma hipótese: uma hipótese de uma linhagem que evoluiu independentemente de uma metapopulação e que transcende o espaço-tempo. Então trabalhamos nesse sentido”, ressalta o paleontólogo.
Uma genealogia da espécie
Estima-se que o Ypupiara lopai tenha vivido entre 66 e 72 milhões de anos atrás, durante o final do período Cretáceo. A partir dos ossos disponíveis, os pesquisadores conseguiram diagnosticar o fóssil como parte de um grupo de dinossauros carnívoros, os terópodes. Posteriormente, com comparações mais refinadas, perceberam que se tratava então de um dromeossaurídeo – família popularmente associada a predadores vorazes e extremamente inteligentes, tais como o Velociraptor, um dos dinossauros mais icônicos e personagem recorrente de filmes como Jurassic Park e Jurassic World.
Brum destaca que, de acordo com uma estimativa inicial, o dinossauro teria entre 2,5 e 3m de tamanho, medindo da ponta do focinho até a o final da cauda. A partir das características morfológicas dos dentes, que têm formato predominantemente cônico, acredita-se que o Ypupiara lopai se alimentava de peixes e pequenos vertebrados, como sapos e aves, em um comportamento muito parecido com o de uma garça atual. O primeiro termo de seu nome científico, inclusive, significa “aquele que vive nas águas”, em tupi.
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Uma das etapas do estudo, que também contou com participação da Universidade Federal do ABC, do Museu da Amazônia e do Museu de Ciências da Terra, envolve a realização de uma análise filogenética, que é justamente uma fase de compor hipóteses de relacionamentos para o Ypupiara. Brum explica que a partir de então a equipe passou a focar as comparações dentro de um grupo ainda mais específico: os unenlagíneos, que contam com aproximadamente sete espécies.
Dentre esse punhado de espécies, apenas duas possuem material craniano para comparação: o Austroraptor cabazai e o Buitreraptor gonzalezorum. As análises detalhadas dos dentes mostraram que, embora o Ypupiara tenha características comuns aos outros dois unenlagíneos, há particularidades que, quando combinadas, fazem dele uma espécie única.
“O Ypupiara apresenta características que estão presentes no Buitreraptor, como, por exemplo, o amplo espaçamento entre os dentes, mas outras características estão presentes também no Austroraptor, como os dentes em formato mais conidonte [cônico] do que zifodonte [pontudo, como uma faca]. Mas também há características específicas do Ypupiara, a exemplo da região lateral da sua maxila não ter forâmen vascular [abertura que permite a passagem de várias estruturas, desde nervos até vasos sanguíneos], além do espaço retangular entre os dentes”, explica.
Segundo o paleontólogo, há uma diversidade ainda desconhecida de dromeossaurídeos e terópodes de pequeno porte para a região do Bauru, bacia sedimentar que abrange parte das regiões Centro-Oeste e Sudeste, além de uma parte do Paraguai. Muito provavelmente o Ypupiara é o primeiro de uma leva – pode haver outros semelhantes e, quem sabe, até novos dinossauros brasileiros.
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Além da descoberta da nova espécie, os pesquisadores trabalharam a partir da construção de um novo grupo Unenlagiinae, que abrange os unenlagíneos e os halszkarraptoríneos – dromeossaurídeos semiaquáticos originários da Ásia, principalmente na Mongólia e na China, que têm uma série de características muito semelhantes às encontradas no primeiro grupo. De acordo com Brum, trata-se de uma hipótese de relacionamento nunca antes descrita. A nova descoberta vem a questionar sobre como essas linhagens se relacionaram durante o período Cretáceo e como formaram grupos tão distintos e tão distantes em termos biogeográficos.
Nesse sentido, a partir da descoberta do Ypupiara e com base em registros disponíveis na Argentina, os pesquisadores traçaram alguns cenários para explicar a distribuição dos unenlagíneos na América do Sul. Para eles, eventos de dispersão do grupo podem explicar a atual distribuição desses dinossauros no território.
“No início do Cretáceo Superior, os unenlagíneos se distribuíam até uma grande barreira geográfica: o deserto do Caiuá, que separava a Argentina da região do Bauru. Naquela época, com a regressão do deserto e o aumento da umidade, foi possível que esse grupo se dispersasse para o Brasil”, comenta.
Perda do fóssil
O material estava emprestado para estudos ao Museu Nacional, que foi acometido pelo trágico incêndio em 2/9/2018. Apesar da perda incalculável, os pesquisadores conseguiram descrever a espécie a partir de fotos detalhadas do material depositadas em um repositório público – um dos requisitos, segundo o Código Internacional de Nomenclatura Zoológica, para a nomeação de uma nova espécie nessas condições.
“O trabalho do Ypupiara, no caso de estudos futuros, poderia ser realizado com esses dados, inclusive por outros cientistas que não nós. A ideia de ter os dados públicos é justamente permitir a replicabilidade e livre consulta de todas as informações”, conclui Brum.
Alexander Kellner, diretor do Museu Nacional e um dos participantes do estudo, destaca, em comunicado oficial do MN, que “são trabalhos como esse que ratificam que o Museu Nacional continua vivo, e nossas atividades científicas permanecem ininterruptas e com grandes descobertas em âmbito internacional”.
O estudo é assinado por Arthur Souza Brum, Rodrigo Vargas Pêgas, Kamila Luisa Nogueira Bandeira, Lucy Gomes de Souza, Diogenes de Almeida Campos e Alexander Kellner.