A crise sanitária da Covid-19 exarcebou uma outra que já vinha sendo moldada nos últimos anos: a crise da informação. O termo infodemia se tornou popular para designar o excesso de conteúdo sobre um tema que, na maioria das vezes, inclui também notícias falsas. Produzidas de maneira deliberada ou não, informações incorretas confundem a população, induzindo, muitas vezes, a comportamento de risco e um maior contágio.
Dados divulgados pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), órgão regulador do sistema de saúde norte-americano, e analisados pela Associated Press mostram que 99% dos óbitos pela Covid-19 ocorridos em maio no país foram de pessoas não vacinadas. Os Estados Unidos têm atualmente cerca de 53% da população elegível totalmente imunizada e possuem capacidade para vacinar os que faltam. A dificuldade em alcançar a cobertura necessária se dá, principalmente, pela desinformação espalhada pelo movimento antivacina e por outros atores sociais.
Embora no Brasil as pesquisas realizadas por empresas especializadas – como o Datafolha – mostrem que mais de 90% da população pretende se vacinar, as fake news vêm gerando desconfiança no público acerca dos imunizantes e outras diretrizes básicas de saúde na pandemia. Segundo Rose Marie Santini, professora da Escola de Comunicação (ECO) e pesquisadora do NetLab, existe uma circulação intensa de informações falsas, incorretas ou enganosas, simulando produção ou divulgação científica sobre transmissão, tratamento e prevenção da Covid-19, em particular terapias comprovadamente ineficazes.
“Esse fenômeno já havia sido registrado durante a crise do Ebola em 2014, porém cresceu vertiginosamente com a pandemia. As fábricas de ciência falsa viram seu alcance potencializado, sobretudo pelas mãos daqueles que fazem uso nocivo das plataformas digitais para orquestrar campanhas de desinformação”, conta.
Em artigo publicado na Nature, pesquisadores mostram que a crise da desinformação é tão grave que não atinge apenas as notícias ou boatos, mas a própria ciência, com a proliferação de sites duvidosos que publicam artigos e trabalhos acadêmicos sem o devido processo de análise. Na pandemia, as fake sciences – como denomina Santini – ganharam escala, velocidade e volume muito maiores do que já acontecia anteriormente. Além disso, sua dinâmica de publicação ficou muito mais sofisticada. “Portanto, tanto as notícias falsas sobre ciência como os artigos científicos falsos passaram a ser massivamente compartilhados nas redes sociais e em aplicativos de mensagem. Isso demonstra que a indústria de falsificação de informação passou a afetar a ciência como vem afetando o jornalismo.”
Brasil: um triste exemplo do que não seguir
Muito antes da pandemia de Covid-19, o Brasil já figurava entre os países onde mais se espalhavam fake news, com rumores, estigmas e teorias conspiratórias e pseudocientíficas. Com o início da crise sanitária, a indústria da desinformação já estava estabelecida e encontrou um terreno fértil para intensificar ainda mais esse fenômeno. Para Santini, o problema foi agravado porque informações falsas – como, por exemplo, a indicação de medicamentos ineficazes e a rejeição ao uso de máscaras – foram disseminadas e amplificadas, em diversos momentos, por chefes de Estado, parlamentares e influenciadores, além de canais institucionais.
“Pesquisas no mundo têm mostrado que, em situações de calamidade e emergência em saúde, o impacto da disseminação de desinformação por chefes de Estado é imenso e afeta diretamente o comportamento e o entendimento da população sobre a crise.”
A maioria dos rumores pseudocientíficos identificados em nível global durante a pandemia foram relacionados à transmissão e mortalidade da doença, com bastante destaque para a prevenção e o controle. Já no Brasil, o aspecto mais explorado pela fake science é o tratamento precoce, principalmente com o uso de medicações como a ivermectina e a cloroquina. A professora afirma que, com base nessa ideia, sites de fake news tentam estimular uma inversão do negacionismo, argumentando que os verdadeiros negacionistas não são as pessoas que não desejam tomar vacina, mas sim os que negam um suposto tratamento precoce. “E, com isso, forma-se um ciclo vicioso de desinformação, que articula fake news e fake science”, explica.
O impacto das fake news na vida das pessoas
Rômulo Neris é doutorando em Imunologia e Inflamação na UFRJ e membro da Equipe Halo, iniciativa da Organização das Nações Unidas (ONU) que reúne cientistas envolvidos no combate à Covid-19, e vem trabalhando nas redes sociais para trazer informações corretas, seguras e verificadas. Desde o início da pandemia, o pesquisador publica conteúdo na internet para um público leigo, mas com muitos questionamentos sobre o coronavírus.
“As principais dúvidas são sobre o uso de vacinas, como são feitas, como funcionam, qual grau de proteção elas dão, se valem a pena ou não. Perguntas que surgem o tempo todo, além de precisar desmentir fake news que tentam de alguma maneira minar a adesão da população ao uso de vacinas.”
Entre os internautas, as questões mais recorrentes ligadas à desinformação pertencem a dois grandes blocos. O primeiro é sobre tratamento, terapias e abordagens mais simples e rápidas que combateriam a infecção, como consumir limão ou gargarejar com vodca, práticas totalmente ineficazes. Já o segundo e mais perigoso bloco envolve informações falsas que induzem a população a comportamentos de risco, como as fake news sobre os malefícios do isolamento e do uso de máscara, além daquelas que geram desconfiança em relação à vacina.
“De forma simples, quando falamos que fake news matam, isso significa exatamente que existem indivíduos na pandemia que são vítimas por causa da desinformação. Essas pessoas geralmente não têm muito acesso a informação ou não têm conhecimento suficiente para diferenciar o que é ou não uma informação adequada , tornando-se, assim, mais vulneráveis à exposição e adoção de comportamentos de risco, sendo mais infectadas e podendo vir a óbito”, lamenta ele.
Responsabilização e uma possível saída
Compartilhar fake news é muito fácil: provavelmente todos nós algum dia já o fizemos. Mas é importante salientar que fake news e desinformação são coisas diferentes. Na teoria, a desinformação é conceituada como uma tentativa deliberada de confundir ou manipular pessoas para atender a um objetivo específico. Uma das ferramentas desse projeto são, exatamente, as notícias falsas. Então, quando compartilhamos fake news, podemos estar agindo com boa intenção, porém sendo vítimas de uma tentativa muito maior de desinformação.
Dessa forma, a responsabilidade pelas informações falsas também é individual. É importante que todos busquem verificar as notícias em fontes confiáveis, como instituições públicas de pesquisa e grandes sites de mídia. “Os resultados da revisão sistemática de literatura que realizamos indicam que, embora as pessoas reconheçam as fontes mais confiáveis de informação em saúde, como cientistas e profissionais da saúde, elas costumam recorrer às fontes mais fáceis, como amigos, parentes e redes sociais, para se informar em situações de crise e emergência em saúde”, enfatiza Santini.
Segundo a professora, as evidências mostram que uma grande parte da população ainda desconhece como funciona a ciência e seus mecanismos de validação. Por isso, para combater as fake news e a fake science, é preciso investir em uma educação científica capaz de promover a conscientização e a criação de habilidades para identificação dos conteúdos que cumprem os requisitos de uma produção acadêmica séria e rigorosa. Assim, a população poderá diferenciar as notícias verdadeiras das fake news e fake science no fluxo de informações excessivas.
Dessa forma, o combate à prática não pode estar apenas nas ações individuais dos internautas, mas, principalmente, no monitoramento, por meio das grandes plataformas sociais, e na criminalização dos projetos de desinformação. Algumas redes sociais – como o Twitter, o YouTube, o Facebook e o Instagram – promovem, ou pelo menos deveriam promover, ações específicas de acompanhamento e análise dos conteúdos postados, com possibilidade de apagar o post e até mesmo banir, temporariamente ou não, o usuário que propagou fake news, como já aconteceu com o ex-presidente americano Donald Trump. Mas isso ainda não é o suficiente.
“Até que isso seja feito, mesmo que de forma rápida, em cinco ou dez minutos, a interação e o engajamento da notícia podem já ter alcançado milhões de pessoas dependendo de quem seja o emissor dessa mensagem. Acredito que esse tipo de mecanismo de vigilância deva ser de fato aprimorado pelas empresas. Estamos vivendo um período que nunca vivemos, de acesso e tráfego de informação, e basicamente precisamos que elas suportem esse tipo de coisa, mas também precisamos de uma vigilância ativa da comunidade”, defende Rômulo.
Outras iniciativas também buscam investigar os responsáveis pela criação e divulgação de notícias falsas de maneira coordenada e com fins políticos e econômicos, como é o caso da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News e a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19, além de uma série de projetos de leis nas esferas federal, estadual e municipal.
Sempre verifique a informação que está compartilhando. Caso tenha dúvidas, busque instituições sérias de pesquisa como a UFRJ, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e diversas outras universidades brasileiras.
Fake news podem matar, mas compartilhar informação correta salva vidas.