Um programa desenvolvido pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) poderá beneficiar pessoas com deficiência auditiva, proporcionando a elas maior autonomia no estudo e no trabalho. Trata-se do LibrasOffice, uma interface livre e gratuita projetada especificamente para auxiliar tais usuários a partir da tradução, em Língua Brasileira de Sinais (Libras), do pacote de softwares LibreOffice – que oferece editor de texto e editor de planilhas, entre outros.
O LibrasOffice surgiu de uma demanda de 2015 para auxiliar o treinamento de 20 pessoas com deficiência –um terço delas com deficiência auditiva –contratadas pela Fundação Coppetec (que administra os projetos da Coppe), no âmbito do projeto Coppe Inclusão. Algumas pessoas com deficiência auditiva não são oralizadas e, portanto, não se comunicam por meio da língua portuguesa – mas a partir da Libras. Essa condição estava dificultando o treinamento dos contratados para exercer suas funções, em sua maioria administrativas.
Para enfrentar o problema, estudantes e pesquisadores, sob a coordenação do professor Henrique Cukierman, do Programa de Engenharia de Sistemas e Computação (Pesc) da Coppe, desenvolveram um software que propicia a autonomia e dispensa a presença de intérprete ou instrutor para o uso do computador. A iniciativa foi desenvolvida pelo Laboratório de Informática e Sociedade (LabIS) e faz parte de um projeto de extensão homônimo.
Segundo Ricardo Jullian, aluno de doutorado da Coppe, o programa tornará mais eficazes futuros treinamentos. “Sem ele, seria necessário contratar seis ou sete intérpretes para realizar a capacitação de aproximadamente 10 profissionais contratados, o que inviabiliza o projeto”, afirmou.
Dessa forma, uma ferramenta criada a partir de uma demanda local poderá beneficiar milhões de pessoas em todo o país. “O trabalho realizado foi ‘apaixonante’ para todos os envolvidos. O aplicativo pode resultar em um impacto muito grande para esse público. Afinal, são 12 milhões de pessoas surdas ou parcialmente surdas no país. O potencial de beneficiários é muito grande”, comemora o professor Cukierman.
João Uelington foi um dos profissionais contratados pela Coppe e capacitados pela Fundação Coppetec, com treinamento em LibrasOffice. Para ele, o programa é uma importante forma de intermediação entre o ouvinte (pessoa com capacidade auditiva plena) e o surdo para ajudar na interlocução entre ambos nas atividades de trabalho. Funcionário da Gerência de Recursos Humanos (GRH) da Coppetec, João compartilhou o conhecimento do software com seus colegas. “Até mesmo alguns ouvintes já o utilizam. O treinamento no LibrasOffice foi uma experiência muito boa. Seria interessante o uso ser expandido na UFRJ, para que mais pessoas conheçam esse programa”, afirmou.
Outro funcionário da Coppe que passou pelo treinamento foi Adilson Rodrigues, que exerce função administrativa no Laboratório de Engenharia de Polimerização (Engepol). Segundo Adilson,a iniciativa da instituição em buscar auxiliar a comunicação entre ouvintes e surdos é muito positiva. “O LibrasOffice deve ser mostrado em palestras, para que surdos e ouvintes conheçam sua importância”, destaca.
O programa já foi testado com sucesso na Faculdade de Letras da UFRJ, nas aulas de Introdução à Informática do curso de Letras-Libras, em 2018. Os intérpretes consideram que a ferramenta, por ser um software bilíngue (português e Libras), é útil também para os ouvintes que interagem com os surdos, pois podem expandir seu vocabulário de Libras e aprenderem mais.
“Minha mãe adorou o programa. Ela disse ‘aproveita que essa experiência vai ser boa pra você’, e ela mesma está usando em casa”, relata João.
Na ocasião, João e Adilson também eram alunos do curso de Letras-Libras. Ambos utilizavam o LibrasOffice diariamente, no trabalho e mesmo em casa–evidenciando a autonomia conferida pelo software. “É minha responsabilidade organizar planilhas, então o programa me auxilia a usá-las com maior independência”, enfatiza João Uelington.
Já licenciado como software livre, o LibrasOffice está disponível para Microsoft Windows e ambiente Linux no site do projeto. O lançamento oficial da ferramenta será hoje, 16/4, às 18h, em transmissão ao vivo no canal do Youtube “Informática & Sociedade”, da Coppe.
Concepção do programa começou na sala de aula
O LibrasOffice foi desenvolvido durante uma disciplina oferecida pela Coppe a alunos de graduação do curso de Engenharia de Computação e Informação da Escola Politécnica. Coordenados pelo professor Cukierman, os estudantes Jônathan Elias Sousa da Costa e Eduardo de Mello Castanho desenvolveram o software, que começou a ser concebido em sala de aula e foi concluído no Laboratório de Informática para a Educação. O projeto também contou com a colaboração de Fernando Severo e Pedro Braga, atualmente doutorandos da Coppe. Na época, ambos eram mestrandos.
“Essa disciplina segue o conceito de pedagogia por projeto. Cada grupo de estudantes deve, ao final do semestre, entregar um protótipo cujo tema traga benefícios para uma comunidade. A proposta deve ser dos próprios estudantes. Cada grupo apresenta um Mínimo Produto Viável [MVP, na sigla em inglês], que pode ser um site, um software ou um aplicativo”, explica Cukierman.
Na avaliação do professor da Coppe, o LibrasOffice talvez tenha sido o mais avançado MVP apresentado na disciplina. “O usuário fica mais independente, mais autônomo. Isso facilita o seu aprendizado e também sua atuação profissional”, complementa Jônathan.
Programa beneficia surdos e intérpretes
Segundo Jônathan Elias, o primeiro protótipo era muito simples. Ele usava apenas uma interface de programação de aplicações (API, sigla em inglês) do LibreOffice e disponibilizava um menu à parte com a animação feita pelo VLibras (plataforma desenvolvida pela Universidade Federal da Paraíba que traduz conteúdos digitais em Português para Libras). “O menu exibia gifs com sinais em Libras correspondentes a itens de comando do Calc, editor de planilhas eletrônicas do LibreOffice equivalente ao Excel, da Microsoft”, explica o estudante.
No entanto,a biblioteca de mídia do Vlibras ainda trazia muitos comandos sem sinais correspondentes em Libras, além de alguns itens cuja tradução não era consensual na comunidade. Os primeiros testes de usabilidade mostraram uma enorme preferência por sinais gravados por pessoas em vez de gifs animados. Para aperfeiçoar o software e torná-lo ainda mais amigável ao usuário, a equipe coordenada por Cukierman teve a colaboração de estudantes surdos, como bolsistas de extensão do LabIS, além de discentes de graduação com bolsas de iniciação científica da linha de pesquisa em Informática e Sociedade do Pesc. O processo de desenvolvimento contou com o apoio de Sheila Oliveira, professora bilíngue da prefeitura do Rio de Janeiro e de Niterói, que atua em um projeto de educação voltado para o público surdo em ambos os municípios.
“Precisávamos traduzir a ‘barra inteira’ e alguns sinais que não são consenso na comunidade. Há regionalismos nas Libras. A Libras de Santa Catarina é diferente da Libras do Rio de Janeiro. Então deixamos os próprios usuários decidirem qual sinal usar para cada funcionalidade. Este é o pulo do gato: deixar o usuário se apropriar da ferramenta. Se ele não concordar com o sinal, poderá escolher outro que lhe seja familiar e incluí-lo no sistema, filmando a si próprio no celular, por exemplo, e gravando o vídeo no banco de dados”, relata Fernando Severo, que hoje é aluno de doutorado da Coppe.
Mais informações podem ser obtidas no site do projeto, onde é possível realizar o download do software, enviarcomentários e sugestões (inclusive de novos sinais) e entrar em contato com a equipe de desenvolvimento.