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Livro analisa cobertura jornalística sobre as UPPs

Lançado pela Editora UFRJ, trabalho investiga relações entre o discurso da mídia e a legitimação de recente política de segurança pública do estado

A Política de Pacificação, implementada pela Secretaria de Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro em 2008, que produziu as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), apareceu nas capas dos jornais como uma solução para o problema da violência na cidade. Entretanto, a presença das UPPs nos territórios acabou escancarando contradições sociais e violando direitos da população que vive nas favelas. Tal percurso, assim como suas consequências, é narrado no livro Notícias da pacificação: outro olhar possível sobre uma realidade em conflito (Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2020).

A obra é resultado de pesquisas que o jornalista Pedro Barreto Pereira desenvolveu no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura (PPGCOM) da UFRJ, sob a orientação do professor Paulo Vaz, entre 2010 e 2017. No trabalho, o autor buscou responder como a mídia, em especial o jornal O Globo, produziu um discurso e uma imagem sobre a política pública. Para compreender esse processo, Barreto analisou 556 notícias publicadas entre 2008 e 2016.

No livro, o pesquisador mostra como as notícias de O Globo estimularam o medo na classe média carioca, negligenciaram o contexto de violação de direitos nas favelas e afinaram coro com o poder público sobre a necessidade das UPPs. A partir de 2016, com o fim dos megaeventos – Copa do Mundo e Olimpíadas –, os investimentos para a manutenção da política de segurança foram reduzidos e o discurso de legitimação também perdeu sua força.

Com apresentação da deputada estadual Mônica Francisco e texto de quarta capa escrito pelo professor emérito da UFRJ Muniz Sodré, Notícias da pacificação é a primeira publicação de um técnico-administrativo da Instituição editada na própria casa. Barreto é servidor público desde 2008 e atua como jornalista no Setor de Comunicação da Decania do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH). O livro pode ser encontrado no site da Editora, nas lojas da Livraria da Travessa e na Livraria Antonio Gramsci. Confira mais sobre a pesquisa nesta entrevista.

Conexão UFRJ – Como a relação entre jornalismo e segurança pública se dá na sua pesquisa?

Pedro Barreto – Na pesquisa, eu analiso a cobertura de O Globo sobre as UPPs, entre 2008 e 2016. Procuro apresentar o processo de produção jornalística – em termos não acadêmicos, para o público não especializado – e investigar qual a relação entre o discurso produzido pelo jornal, por meio da seleção de fatos que vão se tornar notícia, enquadramento, escolha de fontes etc., e a consolidação da Política de Pacificação, implementada pela Secretaria de Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro, em 2008. Investigo se houve um questionamento dessa política, uma legitimação e como isso ocorreu; quais aspectos foram realçados e quais foram negligenciados; quais atores sociais tiveram sua fala apresentada e de que maneira elas se relacionam com o discurso do jornal; como esses atores são apresentados e se identificam, ou não, com o público leitor deste veículo, entre outros aspectos.

Conexão UFRJ – Você analisou 556 reportagens sobre as UPPs, publicadas no jornal O Globo, nos períodos de 2008 a 2011 e de 2014 a 2016. Como esse material foi classificado e analisado? A que conclusões chegou?

Pedro Barreto – Eu utilizei a categoria dos interpretative packages, aplicada pela socióloga estadunidense Katherine Beckett, que usou o conceito de frame analisys (ou “enquadramento”, ou “quadros sociais”, ou “quadros”) para investigar as notícias sobre crime e violência em períodos eleitorais nos Estados Unidos. Ela classificou quatro tipos de pacotes, que eu busquei adaptar para a realidade do Rio de Janeiro contemporâneo da seguinte maneira: lei e ordem na favela (encontrado em 62% das matérias); extensão da cidade formal (19%); liberdades civis sob ataque (17%); e pobreza causa crime (2%). Também procurei investigar quais fontes têm declarações mais publicadas nessas matérias: em 57% delas, as fontes são ligadas ao Estado (secretário de Segurança, governador, juiz, promotor etc.), enquanto 45% não são ligadas ao Estado (moradores de favelas, pesquisadores, jornalistas, representantes de entidades etc.). Mas o interessante foi constatar que, mesmo quando as declarações de fontes não estatais são publicadas, muitas das vezes elas referendam o ponto de vista estatal, dominante no discurso do jornal.

Conexão UFRJ – Podemos dizer que O Globo contribuiu para a produção de uma certa imagem sobre as UPPs? Se sim, que imagem foi essa?

Pedro Barreto – A pesquisa não estabelece necessariamente uma relação de causa e efeito entre o discurso e a implantação ou consolidação das UPPs. Mas reconhece que há uma unidade entre o que é dito pelo jornal e o que é dito pelo poder público. Neste discurso, as ocupações policiais nas favelas cariocas – em grande parte localizadas na zona sul da cidade ou em bairros próximos aos equipamentos utilizados nos megaeventos internacionais – são apresentadas como a solução para uma questão compreendida como central no imaginário carioca: a segurança pública. Dessa forma, a “pacificação” das favelas surge no jornal como a única forma de acabar com a violência que teria, segundo esse discurso, origem nas favelas da cidade. Por essa razão, ainda conforme o que está nas notícias, a ideia transmitida é a de que se deve impor o rigor da lei e da ordem nesses territórios custe o que custar. Ainda, as violações de direitos e de liberdades de pessoas residentes nesses territórios são retratadas como “um mal necessário”, “efeito colateral”, “acidente de percurso”, que, de acordo com o jornal, deveriam ser tolerados, tendo em vista o seu objetivo final: a tão sonhada “pacificação” da cidade do Rio de Janeiro. Casos que ganharam grande repercussão, como o do assassinato do pedreiro Amarildo, na Rocinha, e do dançarino DG, no Pavão-Pavãozinho, abalaram bastante essa imagem. No entanto, mesmo nesses casos, eram apresentados como “resquícios” de um momento que seria superado. Hoje, vemos que não era bem assim.

Manifestante protesta, em 2013, nas ruas do Rio de Janeiro, contra o desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, torturado e assassinado em julho daquele ano por agentes da Polícia Militar que atuavam na UPP da Rocinha | Foto: Fábio Caffé (Coordcom/UFRJ)

Conexão UFRJ – A “falência” das UPPs era anunciada?

Pedro Barreto – Eu não sei se a falência econômica era anunciada. Mas ela aconteceu mais cedo do que se esperava, com a saída ou redução de investimentos públicos e privados após o término dos megaeventos internacionais. Podemos dizer que eles (ao lado do interesse do setor imobiliário) foram a principal motivação para a criação da política de pacificação? Fica para o leitor avaliar.

Conexão UFRJ – Como você enxerga a cidade do Rio de Janeiro depois das UPPs?

Pedro Barreto – Pelo que temos visto hoje, está muito mal. Os governadores que implementaram as UPPs foram parar atrás das grades e essa política foi abandonada, ainda que não extinta oficialmente. Em seu lugar, teve vez o decreto federal que determinou a intervenção militar na segurança pública do Rio de Janeiro. Em meio a essa intervenção, a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes foram executados em plena via pública. Até hoje, três anos depois, não sabemos quem ordenou o crime. O governador que assumiu em 2018 se elegeu prometendo atirar “na cabecinha” dos moradores de favelas. Nos bairros mais abastados da cidade, prevalece o modelo “segurança presente”, em que agentes públicos atuam no policiamento ostensivo com parte significativa dos recursos pagos pela Fecomércio. Mas, na maior parte da cidade (57% ou 3,7 milhões de pessoas, de acordo com dados do Núcleo de Estudos da Violência, NEV/USP), zonas oeste e norte, quem detém o controle são grupos paramilitares compostos por agentes do Estado, que ameaçam aqueles que não se submeterem às suas ordens. Além de ser a cidade onde mais se morre em decorrência da COVID-19 no país, este é o cenário do Rio de Janeiro hoje.

O autor e a obra | Foto: Acervo Pessoal

Conexão UFRJ – O que ainda é preciso investigar em relação à produção discursiva sobre segurança pública? Como você vem dando continuidade ao tema em suas pesquisas?

Pedro Barreto – Atualmente, estou concluindo minha pesquisa de pós-doutorado no Programa de Pós-graduação Mídia e Cotidiano (PPGMC) na UFF, sob supervisão da professora Carla Baiense Félix. Nela, investigo como a agenda da Segurança Pública ganhou relevância nas últimas décadas e qual a relação de um discurso que começa na década de 1960 e produz, desde então, um agendamento global da mídia com o que vivemos hoje. Por que a segurança, a lei e a ordem são prioritárias em nossa escala de valores, em detrimento da liberdade, da garantia de direitos para todos e da própria vida humana? Como, ao estimular o medo, por meio de notícias sobre o crime e a violência, os meios de comunicação estimulam a elevação desses valores e o apagamento, ou redução, de outros tantos? Quem são os cidadãos que têm os seus direitos reconhecíveis e quem são aqueles que sequer podem reivindicar a sua cidadania? São essas questões que me acompanham e que tento responder com perspectiva comunicacional e em diálogo com outras áreas do conhecimento.