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Elas projetam o mundo

Ciências “duras” são as áreas com menor número de mulheres, mas elas seguem em busca de mais oportunidades

Dados da última pesquisa realizada pela Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) mostram que, em 2018, 54% dos estudantes de graduação eram do sexo feminino. Porém, nas áreas de Ciências, Engenharias, Tecnologia e Matemática – também conhecidas pela sigla em inglês Stem –, as mulheres ainda têm um longo caminho para alcançar a igualdade entre os gêneros.

Áreas consideradas de grande influência para o futuro do trabalho e da humanidade, as ditas ciências “duras” são responsáveis por avanços importantes, como a inteligência artificial, biotecnologia, robótica e internet das coisas. Embora os últimos anos tenham marcado a maior entrada de mulheres nesses setores, o mercado da inovação ainda é ocupado tradicionalmente pelo público masculino, branco e elitista.

Ana Moura, professora do Instituto Superior Técnico de Lisboa, é uma das fundadoras do projeto Igualdade Stem, do Laboratório do Futuro do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia (Coppe), que promove iniciativas que favoreçam a inserção feminina no setor tecnológico. O projeto surgiu de conversas da docente com Luís Costa, estudante de doutorado da UFRJ. Juntos eles perceberam que os dois países – Brasil e Portugal − compartilham a mesma disparidade entre gêneros.

Gráfico mostra a quantidade de Estudantes cursando ensino superior. Todos: 44% masculino, 56% feminino. Não Stem: 37% masculino, 63% feminino. Stem: 70% Masculino, 30% feminino
Estudantes de ensino superior por gênero. Imagem: Marco A. | Coorcom/UFRJ | Projeto Igualdade Stem

Segundo a professora, ainda é muito comum ouvir de seus pares que essas dificuldades já foram superadas, mas, em seu dia a dia na universidade, fica claro que isso é uma falácia.

“Enquanto eu entrar em um anfiteatro para dar a minha primeira aula de matemática do semestre para estudantes de Informática no ensino superior e, em uma turma de 120 alunos, estiverem apenas dez meninas, não posso considerar que o problema esteja resolvido”, ressalta.

Em um relatório divulgado em 2020, o World Economic Forum afirma que levará cerca de 100 anos para que a igualdade de gênero seja alcançada no mundo. Isso é um reflexo da pouca presença das mulheres nas principais áreas de poder, como a política e a economia, mas também nas áreas-chave para a definição do futuro. “Temos de fato um problema aqui, porque neste mundo digitalizado não podemos nos dar ao luxo de ignorar e colocar à parte um grupo de pessoas apenas por fazerem parte de um gênero que continua a ser marginalizado apesar de representar metade da população mundial”, alerta Moura.

Gráfico mostra a quantidade Gráfico mostra força de trabalho por gênero. Todos: 56% masculino, 44% feminino. Não Stem: 55% masculino, 45% feminino. Stem: 69% Masculino, 31% feminino
Força de trabalho por gênero | Imagem: Marco A. (Coordcom/UFRJ | Projeto Igualdade Stem)

Os perigos de uma tecnologia machista e racista

Em gigantes detentores do poder tecnológico, como Google, Facebook e Amazon, as áreas de maior impacto para inovação, entre elas a inteligência artificial e a aprendizagem automática, são majoritariamente dominadas por homens brancos ocidentais. Para Moura, isso gera consequências machistas, sexistas e racistas na produção de softwares e de linguagens desenvolvidos e exportados para tecnologias digitais.

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Ana Moura |Foto: Acervo Pessoal

É o caso dos algoritmos de reconhecimento facial produzidos e utilizados por essas gigantes e que apresentam uma série de inconsistências. Timnit Gebru, expoente cientista da informação de origem etíope, investigou a ferramenta e descobriu que ela só funciona bem para rostos brancos masculinos. Ou seja, a taxa de falha para não brancos e mulheres continuaria reproduzindo injustiças sociais e raciais, principalmente contra homens negros.

Até então funcionária da Google, Gebru foi demitida em dezembro de 2020, após defender artigo científico que identificava falhas e não apoiava as investigações da empresa na área.

“Timnit Gebru, tendo feito parte do 1,6% de mulheres negras que trabalham para a Google, incorreu no erro de achar que as suas publicações científicas, o seu prestígio científico, na área da Ética da Inteligência Artificial lhe davam o direito de criticar os desenvolvimentos de software que tantos lucros irão trazer para a empresa.No mês de fevereiro de 2021, mais uma mulher do Departamento de Ética de IA no Google, Margaret Mitchell, desta vez uma mulher branca, foi despedida por ter opiniões sobre a falta de diversidade na contratação de quadros da empresa e por ter apoiado Gebru”, conta.

Construção feminina

Karoline Vieira e Nathalia Colares são duas mulheres que conseguiram furar a bolha. Engenheiras civis, ambas escolheram a carreira ainda no ensino médio por afinidade e grande curiosidade com o setor. Segundo o Censo de Educação Superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a Engenharia Civil é uma das áreas das engenharias que conta com maior número de mulheres. Mesmo assim, a desigualdade é grande: elas são apenas 29,86% do corpo discente.

“Durante a minha graduação, tinha um número significativo na turma de Engenharia Civil, não chegava a ser metade da turma. Mas havia mais mulheres do que em outras engenharias, como a Naval, Mecânica e Elétrica, que era nítido que a quantidade de homens era muito superior”, diz Vieira.

Colares afirma que escolheu o curso em um momento de aquecimento do mercado e acredita que isso possa justificar uma procura maior. “Por incrível que pareça, não tive a sensação de que estávamos em minoria. De fato, não sei se isso foi algo pontual, pois sei que é uma carreira que, tradicionalmente, forma muito mais homens. Lembro que cheguei a estagiar com muitas estudantes de Engenharia. Entretanto, infelizmente, essa proporção não se mantinha nas reuniões de gestão e nos cargos de chefia. Vejo que, a cada nova geração, temos ocupado mais espaço, reflexo do crescente número de engenheiras qualificadas que têm entrado no mercado.”

Nathalia Colares | Foto: Acervo Pessoal

Dentro da Engenharia as duas escolheram caminhos diferentes. Colares prestou concurso e hoje é servidora pública exercendo sua profissão, já Vieira optou pela área acadêmica e, no momento, cursa o doutorado na Escola Politécnica da UFRJ e dá aulas para estudantes de pós- graduação. 

Como professora, Vieira vê o esforço das gerações de engenheiras antes dela surtir efeito em turmas mais diversas, mas reconhece que o machismo também é forte nas universidades. Embora sejam maioria na pós-graduação, com mais de 53% de bolsas, segundo a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), as mulheres ainda são minoria entre os professores e nos cargos de maior hierarquia, principalmente se essa mulher for negra.

Karoline Vieira | Foto: Acervo Pessoal

Parte disso pode ser explicado pelo machismo estrutural presente na universidade, mas também pela carga mental e dificuldade com divisão de tarefas às quais as mulheres são submetidas na sociedade, seja em suas casas ou em seus trabalhos. A criação de filhos e o gerenciamento do lar ainda pesam mais nas vidas das mulheres, impedindo, muitas vezes, o desempenho na pesquisa e no mercado de trabalho.

“Esse assunto tem sido mais debatido, mas acho que a universidade tem um papel muito importante em auxiliar a inserção dessas mulheres nas áreas tecnológicas e científicas. Em outros países como a Austrália existe a tentativa por parte do governo e das universidades de inserir cada vez mais as mulheres nessas áreas de atuação, como, por exemplo, especificando que algumas bolsas de estudo tanto na graduação quanto na pós sejam apenas para mulheres. O número de mulheres tem aumentado, mas ainda é muito grande o número de meninas que desistem do curso ao longo do tempo ou que sofrem diversas formas de preconceito”, explica Vieira.

Gráfico mostra a quantidade de Estudantes cursando ensino superior. Todos: 44% masculino, 56% feminino. Não Stem: 37% masculino, 63% feminino. Stem: 70% Masculino, 30% feminino
Estudantes de ensino superior por gênero. | Imagem: Marco A. (Coordcom/UFRJ | Projeto Igualdade Stem)

Colares concorda que a universidade possui grande papel no objetivo de tornar a Engenharia mais igualitária.

“Uma vez que o mercado se renova de tempos em tempos, é na universidade que os futuros profissionais devem se conscientizar da necessidade de mudança. Visto que um dos pilares da universidade é a extensão, a inclusão de mulheres na Engenharia também deve ser pauta de discussão para que não só engenheiras se formem, mas também consigam se inserir no mercado. Por isso, creio que a universidade poderia promover fóruns de debate, palestras para a comunidade,  ações conjuntas com empresas para inclusão de mulheres no mercado e ainda fomentar o reconhecimento da atuação de mulheres em áreas tradicionalmente masculinas.”

Não existe mudança que não passe pela educação. Para Moura, o primeiro impulso pode ser dado dentro de casa, ao se estimular que as meninas possam explorar habilidades ligadas à matemática e às ciências e os meninos, as voltadas para o cuidado e a economia doméstica. “Deixar de pressionar as nossas filhas e sobrinhas que gostam de matemática a irem para Medicina ou Biologia, e os nossos filhos que gostam de jogos de computador a seguir o Bill Gates… As primeiras podem descobrir muito para fazer em inteligência artificial; os segundos podem escolher uma área mais artística e desenvolver gráficos menos estereotipados.”