Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres são maioria na população brasileira, composta por 51,8% delas e 48,2% de homens. Apesar disso, quando pensamos em mercado de trabalho, a situação ainda é diferente da dos homens. O levantamento Estatísticas de Gênero, também do IBGE, mostra que em 2019 a taxa de participação feminina na força de trabalho era de 54,5%, enquanto a masculina era de 73,7%.
Além dos dados quantitativos, é necessário considerar que, historicamente, à mulher foi atribuída a função de cuidadora e ainda hoje os papéis sociais tidos como femininos ou masculinos influenciam nas escolhas das áreas nas quais trabalhar. O levantamento destacou ainda que as mulheres dedicavam, em média, 21,4 horas semanais aos cuidados de pessoas ou afazeres domésticos em 2019, quase o dobro da média dos homens, que foi de 11 horas semanais.
A diferenciação entre mulheres e homens é realidade presente em muitas áreas do mercado de trabalho e o setor de audiovisual é um dos que ainda segmentam suas funções por gênero. O audiovisual no Brasil tem números de uma grande indústria. Segundo o último estudo divulgado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) por meio do Observatório do Cinema e do Audiovisual (OCA), em 2018 o valor adicionado pelo setor audiovisual foi de R$ 26,7 bilhões, que se refere ao valor que a atividade acrescenta aos bens e serviços consumidos no processo produtivo.
No setor, às mulheres sempre couberam funções como produção, arte ou maquiagem. Aos homens cabem as de força e das chamadas áreas de técnicas, como maquinária (responsável pela construção dos equipamentos mecânicos necessários às movimentações de câmera, por exemplo, carrinhos, trilhos, grades, tripés), elétrica, fotografia e som.
As profissionais que escolhem tais áreas no audiovisual têm que lidar com várias questões que estão além do cotidiano de trabalho. Ana Luiza Penna, única mulher microfonista em Salvador, conta que no início de seu trabalho os homens insistiam para que ela mudasse de área, alegando que aquilo não era coisa de mulher.
Esconder características ditas como femininas algumas vezes pode ser estratégia de sobrevivência. Suelen Menezes é assistente de câmera e revela que, apesar de sempre ter sido respeitada no trabalho, já se colocou em situações de negar seu feminino.
“Acho que hoje em dia tenho mais leitura disso. Sempre fui muito respeitada na minha posição de assistente de câmera. Ouvia ‘gosto mais de trabalhar com homens’ da boca de algumas chefes mulheres. E isso sempre me despertava mais força e ‘masculinidade’ para evitar a ‘fraqueza’ do feminino que elas ou eles queriam negar em determinado job ou filme. Sempre fui taxada de boa profissional que aguentava a correria. Me via satisfeita nessa denominação de força, mas só hoje percebo o quanto me sabotei e criei processos negativos em mim, abandonando qualquer sujeição ao feminino para atendê-los. Reflito e analiso isso até hoje. Atualmente sou verborrágica e, quando me incomodo, minhas questões e meu feminismo soam primeiro”, diz.
São comuns casos de assédio, seja ele moral ou sexual. Suelen conta como aconteceu com ela: “Já aconteceu comigo e com muitas outras. Tudo é muito interno e velado. Comigo foi há uns dois anos. Sem entender na hora, a gente silencia e só entende depois. O assédio não precisa te encostar, está no mais sutil dos gestos incisivos e desrespeitosos. Tudo se confunde na relação diária de 12 horas de trabalho. Caminhamos para o ‘não’ cada vez mais alto e ainda assim é difícil”.
Já com Ana Luiza, o caso mais emblemático de assédio e constrangimento aconteceu após o nascimento do segundo filho. Ela voltou a trabalhar três meses depois do nascimento, deixando leite materno armazenado para que fosse oferecido ao bebê e trabalhando sempre na sua cidade, Salvador.
Clara Machado trabalha na área há pouco mais de um ano e diz acreditar que a situação no audiovisual no Brasil está mudando. Formada em Biologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), a assistente de maquinária conta como tenta driblar a diferença de gênero no setor. “Explicitamente nunca sofri preconceito por ser mulher. Algo direto, grosseiro, não. Eu tenho uma passibilidade por ser mulher nos ambientes masculinos porque eu sou uma mulher de 1,78m, pratico futebol… Então eu convivo em ambientes masculinos praticamente minha vida inteira, o que me facilitou muito em saber lidar com determinadas coisas, saber entrar no joguinho deles ou, às vezes, dar uma resposta atravessada e bancar essa resposta, saber as gírias que usam. Isso me ajuda muito no meu dia a dia com eles. Muitas das vezes, eles chegam cheios de tato comigo, não me deixam carregar as coisas, querem tirá-las da minha mão, e já falo: ‘Larga, larga, eu aguento’. A forma de falar também faz com que percebam que eu não sou uma menininha, perdida, delicadinha, e já começam a me ver com outros olhos e a me tratar mais como um deles. Infelizmente, eu entendo que é um primeiro processo de vivência que eu vou ter e que as mulheres que estão entrando nesse mundo vão ter”, declara.
Muitos alegam ser a força física fator determinante e que, portanto, justificaria a segregação entre homens e mulheres em certas áreas de trabalho. Para Clara, na sua profissão essa é mais uma desculpa para afastar as mulheres.
As mulheres estão em todas as áreas e devem ter os trabalhos respeitados em virtude de serem as profissionais que são. Suelen Menezes acredita que elas devem ter oportunidades de trabalhar em todos os tipos de projeto. “Acho que o atual momento precisa/quer segregar por temática. O que é assunto pertencente ao feminino que, ao menos, dê olhos e narrativas a uma mulher. Concordo! Mas quero mesmo (ao menos para mim) que não seja exclusivamente devido a essas pautas que meu trabalho seja notado. Que eu possa fazer desde o filme sobre feminicídio, mas também um filme de ação com carros e bombas! Quero que seja tão equiparado um dia esse mercado do audiovisual que qualquer profissional seja chamado à altura do que pode desempenhar!, opina.