A tuberculose circula há séculos entre nós. Causada por uma micobactéria altamente contagiosa, a doença tem tratamento e vacina, e mesmo assim mata mais de um milhão de pessoas por ano. Muito mais jovem, a COVID-19 está em um momento oposto. Com vacina recente e sem tratamento, a infecção causada por um vírus ainda paralisa o mundo –com cerca de dois milhões de óbitos em um ano. Uma pesquisa desenvolvida por meio de parceria entre a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e a UFRJ busca compreender a relação entre as doenças nos Brics, grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e Áfica do Sul.
A COVID-19 e a tuberculose têm algumas características em comum. Ambas apresentam tosse, febre e sintomas respiratórios, acometem os pulmões, são transmitidas por via aérea e podem ser fatais. Anete Trajman, pesquisadora da Uerj, afirma, que mesmo com diferenças importantes– como o causador e o curso da doença–, as semelhanças entre elas deveriam servir de de oportunidade para o manejo e diagnóstico correto.
“Pacientes que chegam aos ambulatórios com tosse e febre devem ser investigados para ambas as condições, e há máquinas que fazem PCR para os dois agentes etiológicos – por enquanto elas são usadas no SUS apenas para diagnóstico da tuberculose, mas, se tivéssemos o kit para Sars-CoV-2, poderíamos utilizá-los nessas mesmas máquinas”, conta.
Pesquisas realizadas em pandemias anteriores, como a de influenza, mostraram impacto significativo na morbidade e mortalidade quando em contato com outras doenças respiratórias. A tuberculose, por exemplo, provoca problemas pulmonares que podem fragilizar o indivíduo que, infectado pela COVID-19 ou ainda pela gripe, pode ter uma piora no quadro e, até mesmo, morrer. “Pessoas com doenças crônicas pulmonares, como asma –conhecida por bronquite pelos leigos– e doença bronco-pulmonar obstrutiva crônica ––enfisema ou bronquite crônica– e fumantes têm mais risco de apresentar evolução grave”, declara Trajman.
A professora conta que dados levantados durante a pandemia da gripe, em 1918, mostram um aumento no número de mortes por tuberculose no período. Mesmo que não houvesse tratamento eficaz para a doença na década de 1910, as estatísticas indicam uma potencialização da infecção.
“Os poucos estudos sobre essa associação tuberculose/COVID são contraditórios, e poucas observações foram feitas. Esperamos contribuir para o avanço do conhecimento sobre a interação entre essas duas doenças em nosso projeto.”
Não são apenas os efeitos físicos da infecção pelo coronavírus que podem ter prejudicado o acompanhamento dos indivíduos infectados por tuberculose no mundo, mas também as imposições sociais necessárias durante o isolamento. Com a restrição ou ausência de transporte público e as dificuldades de acesso aos serviços de saúde, parte da população mais vulnerável – e historicamente mais atingida pela tuberculose – teve dificuldade de diagnóstico e tratamento. Além disso, os profissionais de saúde foram acometidos pela pandemia, e muitos adoeceram gravemente ou faleceram. Outros foram realocados para atendimentos da COVID-19, reduzindo a força de trabalho disponível para as demais condições de saúde.
“No Brasil, houve uma redução de 40% do número de testes para tuberculose realizados até maio de 2020. Na sequência, houve uma recuperação parcial, mas a redução da detecção da doença permanece uma preocupação aqui e no mundo”, conta Trajman.
Pesquisa com foco nos Brics
O grupo que reúne os países emergentes Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul responde pela maior parte da população mundial e, também, apresenta uma grande desigualdade. Segundo a pesquisadora, aglomeração, desnutrição, falta de condições de higiene, sistemas de saúde frágeis, resposta ineficaz ou dúbia dos governantes negacionistas e falta de priorização perpetuam cronicamente a endemia de tuberculose e resultaram em epidemias gravíssimas de COVID.
Tendo isso em vista, o projeto decidiu buscar parcerias com os países para tentar compreender como a tuberculose e a COVID se relacionavam em suas nações. Foi necessário o levantamento de dados disponíveis nos diversos sistemas de informação para compreender as interações entre as duas doenças e o efeito das medidas de distanciamento social nos indicadores de tuberculose.
“Com base nos resultados, vamos reunir gestores de saúde, sociedade civil e pesquisadores a fim de propor diretrizes para restrições nas próximas ondas e pandemias Vamos trocar expertise com pesquisadores de ponta da Índia, Rússia e África da Sul. Pretendemos promover intercâmbio de alunos, mesmo que não possa ser presencial por conta da pandemia. A inclusão de vários países também permite a generalização dos achados”, conta.
Outro pesquisador envolvido no projeto, José Manoel Seixas, do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia (Coppe), afirma que a parceria com os Brics é muito importante em um momento em que esses países aparecem como atores principais na produção de vacinas contra a COVID-19. “Essa parceria em pesquisa fortalece os laços entre os países e segue uma vocação de cooperação que vem sendo seguida em várias áreas, com notável destaque para a área da saúde.”
Multidisciplinaridade em prol da saúde
Além de Seixas, a Coppe apoia a pesquisa por meio de seu departamento de Engenharia Életrica, que conta com uma área acadêmica voltada para Inteligência Computacional e uma linha de pesquisa dedicada às Aplicações na Saúde. Segundo Seixas, a Coppe trabalha há duas décadas no apoio de triagem e diagnóstico em pacientes com tuberculose pulmonar e extrapulmonar, utilizando modelos de inteligência computacional que associam uma probabilidade e um grupo de risco para cada paciente.
Em 2020, foram iniciados trabalhos,com parceria da África do Sul, em projetos de triagem para pacientes com indicação de infecção latente de tuberculose, com várias ações da Coppe, como um projeto que busca utilizar exames por imagem para uma ação de telemedicina em apoio à triagem e diagnóstico de COVID-19.
“Em todo esse trabalho multidisciplinar, a pesquisa permite avançar a fronteira de conhecimento de todas as áreas, pois os modelos de inteligência computacional são guiados pelo conhecimento especialista da área da saúde e são postos à prova em problemas complexos de reconhecimento de padrões, havendo forte impacto social”, explica o professor, lembrando que startups incubadas na UFRJ também participam do projeto.
Trajman também afirma que a multidisciplinaridade é um dos grandes trunfos da pesquisa. “Temos uma abordagem inovadora e multidisciplinar, que inclui virologistas, clínicos, engenheiros especialistas em inteligência artificial, sanitaristas, epidemiologistas, sociedade civil, organizações não governamentais e apoio dos ministérios da saúde dos respectivos países. Pretendemos fornecer evidências para a tomada de decisão”, conclui.