Há um mês, no Chile, um plebiscito histórico fez com que mais de cinco milhões de pessoas votassem por uma nova Constituição. Esses eleitores confirmaram o que há um ano vinham reivindicando nas ruas, sob bombas de gás lacrimogêneo e forte repressão policial: direitos sociais, serviços públicos, acesso gratuito aos recursos naturais, qualidade de vida, reconhecimento dos povos originários. Que lições podemos tomar dessa experiência? Para Rejane Carolina Hoeveler, professora da Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ e pesquisadora do tema, há muita luta pela frente e os movimentos sociais devem seguir pressionando os legisladores. Por outro lado, se a Constituição partir de uma “folha em branco” e atender às demandas populares, poderá enterrar de vez o modelo socioeconômico do neoliberalismo. “Moralmente, já está enterrado”, avaliou. Rejane falou à nossa reportagem na Rádio UFRJ e, também, por aqui. Confira a íntegra da entrevista.
Conexão UFRJ – Por que a maioria da população chilena optou por uma nova Constituição? Que forças estão em disputa no país?
Rejane Hoeveler – Em primeiro lugar, precisamos entender que foi um processo. Não foi da noite para o dia. Foi um processo que se iniciou em outubro de 2019, com o chamado “estalido social”, um grande levante popular multitudinário que começou com o questionamento e a revolta estudantil, principalmente com relação ao aumento das tarifas do metrô, mas rapidamente se alastrou e passou a abarcar uma série de reivindicações populares com relação, por exemplo, aos direitos sociais, trabalhistas, ao direito à água, que é privatizada, à previdência – eles têm um dos piores sistemas de previdência do mundo, implementado pela ditadura de [Augusto] Pinochet, em 1980, esse mesmo sistema que o ministro Paulo Guedes queria implementar no Brasil. Ao longo do processo do movimento de outubro e ao longo dos meses seguintes, houve uma fortíssima politização de todos esses setores: jovens, mulheres, trabalhadores, comunidade LGBT, comunidade palestina em Santiago, entre muitos outros, que começaram a se dar conta de que, para atender minimamente a essas necessidades urgentes da população chilena e confrontar com essa imensa desigualdade social que o modelo neoliberal chileno produziu, seria necessário mudar a Constituição.
Como sabemos, a atual Carta foi escrita por um grupo pequeno de homens encabeçados por Jaime Guzmán, criador da UDI [União Democrata Independente], um dos partidos na coalização do atual presidente, Sebastián Piñera. Essa Constituição foi redigida de uma forma bem amarrada, sendo praticamente impossível modificá-la por dentro das cláusulas vigentes. Por isso que nós consideramos que foi em 1980 a primeira vez que o neoliberalismo se constitucionalizou. Então, em determinado momento do processo de mobilizações, que na verdade não começou no “estalido”, mas que, a partir do “estalido”, ganhou uma enorme força social, a Constituição foi questionada e a população passou a exigir uma nova Carta, para atender às reivindicações e necessidades do povo chileno.
Quanto aos setores sociais em luta, quando a gente vê um mapa que viralizou nas redes sociais, sobre os bairros de Santiago que votaram pela continuidade da atual Constituição, ou seja, pela manutenção do status quo, algo fica evidente: são justamente aqueles bairros que concentram a elite do país, quem manda política e economicamente, quem está na grande mídia. São três bairros que a gente poderia equiparar no Rio de Janeiro ao Leblon, a Ipanema e à Lagoa. Assim, está claro quais são os setores em disputa: o povo, mobilizado nas ruas, nos seus locais de trabalho, nas “comunes” – iniciativas de solidariedade social durante a pandemia – e essas elites que não querem ter tocados os seus privilégios.
Conexão UFRJ – Qual é a expectativa para a redação da nova Carta? Será possível, de fato, “enterrar” o neoliberalismo?
Rejane Hoeveler – Neste momento está tudo em disputa, tudo em aberto. Inclusive, o próprio formato da Convenção Constitucional. O fato de ter sido chamada de Convenção já foi, digamos, uma derrota para os movimentos sociais que reivindicavam, na verdade, uma Assembleia Constituinte, com todos os poderes que esta pode dar e que uma Convenção Constituinte não dá. O que os movimentos sociais querem é que a nova Carta seja escrita a partir de uma folha em branco, ou seja, desde zero, e não a partir de modificações em artigos da Constituição pinochetista. Porém, os movimentos sociais ainda estão bastante mobilizados para que essa Convenção Constituinte seja transformada em uma Assembleia e continuam também bastante mobilizados acerca de todos os pontos que configuram a própria composição dessa Convenção.
Um exemplo bastante claro é o fato de que ela vai ser paritária. Isso não estava previsto no início, quando houve, em novembro de 2019, o acordo dos partidos políticos com o presidente [Sebastián Piñera] para a realização do plebiscito. Isso foi uma conquista posterior, graças ao movimento feminista. Outro exemplo cabal tem a ver com o debate sobre a garantia de vagas, no processo da nova Constituinte, para os povos originários, que no Chile são, pelo menos, 12 e equivalem a cerca de 10% da população. É significativo e fundamental que eles tenham garantida uma boa representação nessa Convenção. E isso ainda está em jogo, está sendo discutido pelo Senado.
Todo o processo da construção dessa nova Constituição, e o que a gente pode esperar dela, vai depender dessa mobilização, que ela continue, vai depender do nível de tensão e de luta social dos próximos meses. Se esse nível de luta se mantiver, podemos esperar uma Constituição que contemple direitos sociais básicos, que contemple a reversão das privatizações, proteção ao patrimônio público, ao meio ambiente, aos povos originários, direitos para as mulheres, direitos sociais em geral. Isso que o Chile foi proibido de ter, devido à continuidade dessa Constituição ao longo desses trinta anos. Por isso que um dos slogans deles é “não é por trinta pesos, é por trinta anos”. Na verdade, é por 47 anos [considerando o golpe militar de 1973].
Caso isso aconteça, acredito que é possível sim que esse país que foi o laboratório da doutrina de choque do neoliberalismo seja também o país onde a gente pode ver o neoliberalismo sendo enterrado. Moralmente, já está enterrado. A maioria da população chilena já entende que o modelo neoliberal só gera desigualdades, gera uma qualidade de vida muito baixa e muito aquém de qualquer expectativa. Principalmente tendo em conta que a imagem do Chile era vendida ao mundo todo como um oásis, um país que tem uma renda per capita alta, indicativos econômicos gerais comemorados, é parte da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] etc.
Conexão UFRJ – Foi realizado em novembro, na Universidade Federal Fluminense (UFF), com a participação de pesquisadores de várias instituições e localidades, inclusive da UFRJ, o Seminário Internacional 50 anos de Unidade Popular no Chile. Na sua avaliação, o que essa coalizão ensinou e ensina à América Latina?
Rejane Hoeveler – Na minha leitura, o legado da Unidade Popular é múltiplo. Nós podemos pensar que, por um lado, foi um empolgante exemplo, nos anos 1960 e início dos 70, da possibilidade do chamado socialismo pela via eleitoral ou socialismo democrático. Por outro lado, ao ter em seu desfecho um brutal golpe militar em 1973, encabeçado por um general que era da confiança de Salvador Allende, nos ensinou que, mesmo seguindo à risca as linhas democráticas e eleitorais, os grandes proprietários e o imperialismo não aceitam experiências como essa. Não aceitaram, simplesmente, e toparam uma ditadura que foi das mais sanguinárias da história.