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Cultura Pelo Campus

O encontro como base

Pade, projeto de extensão da UFRJ, promove o encontro entre a Universidade e as comunidades de terreiro de candomblé

Ancestralidade, troca, sabedoria. Palavras que norteiam o trabalho do Projeto em Africanidade na Dança Educação (Pade/UFRJ), um projeto de pesquisa e extensão universitária ligado à Faculdade de Educação Física e Desportos (EEFD), que busca, no intercâmbio entre as comunidades de terreiro de candomblé e a comunidade acadêmica, promover trocas de conhecimentos e experiências.

Na terminologia yorubá, as palavras Padê e Ipadê significam “ato de encontro”. Nos terreiros de candomblé, o Padê é um ritual afro-religioso no qual o orixá Exu estabelece a comunicação, o encontro dos membros do terreiro com os orixás. Há 10 anos, o Pade/UFRJ promove encontros e trocas de saberes que vão além dos muros da Universidade.

As religiões de matriz africana ainda são alvo de diversos ataques e têm sofrido tentativas de apagamento de sua memória desde o período de escravização, quando seus cultos eram proibidos. Elas sofreram um processo de demonização, que continua arraigado no imaginário coletivo até os dias de hoje, gerando preconceito religioso e, mais que isso, racismo religioso. Xandy Carvalho, professor de Folclore Brasileiro da EEFD/UFRJ, criador e coordenador do Pade/UFRJ, acredita que “o Pade é um projeto de resistência. A existência de uma casa de candomblé por si só é um ato político. Os terreiros são sobreviventes de um processo de apagamento de memória”.

Todo o processo é dialógico

Fugindo do olhar eurocêntrico, o objetivo do projeto não é levar conhecimento acadêmico para dentro dos terreiros, mas sim trazer também para a Academia o conhecimento vindo do candomblé. Carvalho destaca o que ele considera ser a missão do grupo:

“O nosso fazer é um fazer poético e crítico. Estabelecemos o lugar crítico, de falar sobre racismo religioso, intolerância religiosa, da importância do candomblé para a cultura brasileira. Nosso papel enquanto universidade é tirar o véu da invisibilidade e de silenciamento que é imposto à cultura afrodiaspórica”.

O Pade é baseado na Lei 10.639/03, atual 11.654/08, que torna obrigatório o ensino da história africana e das culturas afro-brasileira e indígena nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, e na Lei Estadual 5506/09 – ALERJ, que declara o candomblé como “patrimônio imaterial” do estado do Rio de Janeiro e afirma que as comunidades de terreiro de candomblé são espaços de memória, cultura, história e ancestralidade africana.

Uma das atividades que o grupo realiza nos terreiros são seminários baseados na sabedoria que os dois lados têm a oferecer. São estabelecidas parcerias entre o projeto e as casas. A primeira delas foi em 2010 com a comunidade Asé Ylê Aiyê Ojú Odé Igbô, localizada no bairro de Realengo, no Rio de Janeiro, dirigida pela Yalorixá Nara de Oxóssi. Lá foi realizado o primeiro seminário, em 2011.

No mesmo ano, os membros da comunidade de terreiro participaram do III Encontro com Mestres Populares na UFRJ, evento realizado pela Companhia Folclórica do Rio – UFRJ. O Encontro visa proporcionar um espaço de vivência prático-teórica em que os mestres tenham a oportunidade de discutir os problemas e tensões referentes às condições de produção e preservação dos saberes populares, promovendo a integração, discussão e elaboração de uma unidade de ações para apoio à cultura popular. Foi a primeira vez que uma Yalorixá falou na Faculdade de Educação Física por meio do Pade. Depois disso, muitos alunos fizeram projetos baseados na cultura do terreiro.

Ressignificações e novas formas de produzir durante a pandemia

A base do projeto, o encontro, precisou ser ressignificada durante a pandemia de Covid-19. As calorosas reuniões nos terreiros e na Universidade passaram a ser virtuais, mas as produções não pararam. Uma das ações realizadas foi a produção de uma série de vídeos em homenagem às casas com que o projeto tem ou já teve parceria. Para Carvalho, “a produção desse material acaba sendo um afago neste momento de desespero que é a pandemia”. A Retrospectiva dos 10 Anos de Projeto em Africanidade na Dança Educação – Pade /UFRJ lançou os vídeos Iyá Nara − Retrospectiva Pade/UFRJ 10 Anos e Homenagem ao Ilê Axé Jagun Lóyá Retrospectiva Pade/UFRJ 10 Anos. Ambos alcançaram juntos cerca de 30 mil pessoas no Instagram e tiveram 10 mil visualizações no Facebook. Os vídeos podem ser acessados no canal do Pade: https://bit.ly/2Krt6Jt

A Ialorixá mãe Tânia de Jagun, mãe de santo homenageada pela retrospectiva, descreve o sentimento e a relação com o projeto: “O sentimento foi de muita gratidão, de vencer uma batalha muito bonita. Foi lidar com as crianças desse axé com todo amor, com muito respeito, com muita alegria. É uma honra fazer parte do Pade, saber que estamos nos vendo e levando essa cultura a todos. Nossa relação é de irmandade, união, alegria, cumplicidade e é muito importante ter um projeto lindo conosco. Se eu pudesse, eu iria à Universidade pedir para que ninguém deixe acabar esse trabalho de cultura, que mexe de fato com a nossa religião, colocando os pés no chão e trazendo as danças, as culturas tão lindas que nós temos”.

No final de novembro, será lançado o novo vídeo Mãe Nani de Oxum – Retrospectiva Pade/UFRJ 10 Anos, liderança da comunidade de terreiro Ilê Axé Oju Omi Opará Odé, localizada em Duque de Caxias. A casa é parceira do Pade desde 2014, quando esteve presente no V Encontro com Mestres Populares na UFRJ, ministrando oficinas de dança e palestras sobre os saberes tradicionais da cultura do candomblé para turmas da disciplina de Folclore Brasileiro dos cursos de Educação Física e Dança da UFRJ.

A produção dos vídeos demanda um processo que vai da contextualização do terreiro homenageado à produção musical, que inclui a composição da música, gravação de voz e instrumentos com participação de cantores e músicos convidados, o estudo sobre dança, a roteirização, a escolha de imagens e por fim a edição do material. A contextualização se dá no diálogo com o terreiro. Para Ivy Brum, bolsista de extensão do Pade/UFRJ, essa é uma das etapas primordiais no processo de produção. “É importante dialogar com o que ainda é relevante para a comunidade de terreiro. Pensar o roteiro de acordo com a comunidade naquele momento. Acredito que existe uma responsabilidade cultural e social no que estamos fazendo. É importante entender o processo de roteiro e edição dessa forma. Fazer um equilíbrio entre a técnica e o conteúdo.”

Todas as ações são pensadas, discutidas e analisadas em reuniões virtuais, que acontecem todas as segundas e sextas-feiras, desde março. O lançamento de um vídeo marca o fim de um ciclo de pesquisas e o início de outro.

O professor Xandy Carvalho salienta que é importante dizer que o Pade é um projeto que entende as comunidades de terreiro de candomblé como herança africana e contribui para o processo civilizatório de nosso país por meio de seus conhecimentos, fazeres e saberes.