Mais de 70% das mulheres negras que disputaram as eleições municipais em 2020 foram agredidas durante suas campanhas. A informação vem da pesquisa “Violência Política Contra Mulheres Negras”, realizada pelo Instituto Marielle Franco, em parceria com as organizações Justiça Global e Terra de Direitos. Os dados foram divulgados no dia 6/11 e serão atualizados no fim do mês, antes do segundo turno.
Entre 21 e 28/10, foram ouvidas 142 mulheres de 21 estados brasileiros, filiadas a 16 partidos políticos, que concorrem a cargos de vereadora, prefeita e vice-prefeita em 93 municípios. Todas assumiram compromisso com a Agenda Marielle Franco, que estabelece princípios antirracistas, feministas e populares de ação e governança.
A pesquisa aplicou um questionário virtual contendo 41 questões. Foi possível, assim, identificar o perfil das candidatas: 27% são LBTQs, 5% travestis ou transexuais, 5% são de origem quilombola, 3% de origem indígena, 69% nasceram e cresceram em favelas e periferias urbanas, 2% vieram da zona rural e 38% estão vinculadas a religiões de matriz africana.
Violência de vários tipos
A violência política é entendida na investigação como um conjunto de práticas com raízes profundas na sociedade, que vão da ofensa ao ataque virtual, da humilhação pública à agressão física, do desrespeito ao assédio, da discriminação ao menosprezo. Essa violência pode atrapalhar uma campanha, interromper um mandato e até matar. Caso emblemático extremo é o do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, na noite de 14/3/2018.
O estudo, assim, classificou a violência política contra mulheres negras em tipos: racial, sexual, de gênero, pela orientação sexual, física, virtual, moral e psicológica, institucional. As três últimas foram as mais mencionadas.
Oito em cada dez candidatas negras ( 78% das entrevistadas) receberam comentários machistas, misóginos e racistas em suas redes, foram atacadas em lives ou tiveram suas reuniões virtuais invadidas – o que configura violência virtual. Seis em cada dez dessas mulheres (62%) sofreram violência moral e psicológica, tendo sido ofendidas, insultadas e humilhadas publicamente devido à religião, ao lugar de origem ou ao simples fato de estarem na política.
A metade delas (cinco em cada dez ou 55%) reconheceu ter sido vítima de violência institucional, descrevendo situações como discriminação em órgãos da justiça eleitoral, distinção, pressão ou negligência dentro do próprio partido. Mais: 44% das mulheres negras candidatas em 2020 sofreram violência racial; 42% e 32%, respectivamente, relataram o extremo das violências física e sexual e 28% sofreram violência pela orientação sexual ou identidade de gênero.
Os agressores, por sua vez, em cerca de 40% dos casos, não foram identificados. Entre os reconhecidos, de 25% a 29% são adversários políticos das candidatas, de 11% a 15% pertencem a grupos da sociedade civil (neonazistas e antifeministas) e de 4% a 11% são filiados aos mesmos partidos das candidatas.
O instituto Marielle Franco também perguntou se houve denúncia da violência sofrida. 32,6% das entrevistadas denunciaram, registrando boletim de ocorrência em delegacias, expondo a situação na mídia ou em suas redes sociais, comunicando a seus partidos. Quando perguntadas sobre o retorno dessas denúncias, outra informação preocupante: 70% não receberam apoio da sociedade e não acreditam que a denúncia siga adiante.
Democracia em risco
A convite da nossa reportagem, Fernanda Barros, professora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (Nepp-DH) da UFRJ, analisou a pesquisa do Instituto Marielle Franco. Ela classificou a violência denunciada pelas entrevistadas como “alarmante” e destacou a importância de as instituições garantirem a segurança e os direitos das candidatas, principalmente, porque vem aumentando a quantidade de mulheres na disputa por cargos públicos – embora negras e indígenas ainda sejam muito poucas. “Em 2018, houve a participação de 52,6% dentro das casas parlamentares. Foram 290 mulheres no total. Para a Câmara Federal, foram 77, sendo 13 delas negras e uma indígena. Entretanto, no Senado Federal foram sete senadoras. 13% do total de parlamentares. Nenhuma negra.”
A reação contra as mulheres negras revela as entranhas da cultura brasileira. Quanto mais elas se movem, trazendo consigo uma possibilidade de transformação social, mais elas são ameaçadas.
“É o racismo institucional e o racismo estrutural, legado da escravidão, que continuam perpassando o corpo de homens negros e mulheres negras. Os dados [da pesquisa] são muito importantes porque mostram que a democracia neste país precisa passar por reformulações. É necessário que as instituições políticas estejam apercebidas desses dados, para que não tenhamos mais vítimas, mais mulheres negras sendo mortas. Principalmente porque a agenda que nós mulheres negras trazemos se vincula às minorias, às classes pauperizadas, aos extratos pauperizados que se encontram em zonas periféricas”, afirma.
Para a professora, os tipos de violência política descritos na pesquisa do Instituto Marielle Franco refletem como o feminicídio político e a necropolítica se movem por entre as instituições. “Essa letalidade que tem sido implementada dentro dos quadros políticos traz uma experiência da necropolítica, onde há uma neutralidade por parte do Estado no que tange à salvaguarda da vida das mulheres negras, de nós mulheres negras, em âmbito público e privado, e esse ato utilitarista de mortalidade do corpo negro”, avalia.
Sendo assim, fica o alerta: é preciso apurar as denúncias e frear as agressões. “Se nós, de fato, queremos e almejamos a democracia neste país, é necessário que a participação de todos seja feita de forma equânime e que a segurança das mulheres negras seja implementada”, defende Barros.