O livro é uma potente ferramenta de educação, cidadania e inclusão. Em uma sociedade marcada por abismos sociais, ele é uma arma contra a exclusão. Apresenta novas realidades, dissemina conhecimento, amplia a visão de mundo. Por reconhecer essa importância, a Constituição Federal traz em seu texto, no artigo 150, a impossibilidade de instituir impostos sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão. Essa isenção foi pleiteada ainda em 1946, pelo escritor Jorge Amado. A emenda constitucional buscava baratear o custo final e assim levar o produto a diversas camadas da população em um Brasil em que o analfabetismo era regra. Nos anos 1940, 56,1% dos brasileiros com mais de 15 anos eram analfabetos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2019, esse número caiu para 6,6%, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua. O Brasil ainda tem 11 milhões de analfabetos, pessoas com 15 anos ou mais que não são capazes de ler e escrever.
Graças a um confuso código tributário, foi necessária outra lei – Lei nº 10.865, de 30 de abril de 2004 – para que o setor fosse isento também das contribuições para o Programa de Integração Social (PIS) e para Financiamento da Seguridade Social (Cofins). Atualmente a situação do mercado editorial corre o risco de sofrer um grande revés. Tramita no Senado Federal uma proposta de reforma tributária que pode acabar com a desoneração, trazendo impactos para o setor.
Fim da imunidade
Foram apresentadas ao Senado três propostas de reforma, uma delas pelo Ministério da Economia. No texto, entre as modificações, está a criação da Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), que, na prática, reuniria PIS e Cofins em uma única contribuição. Para o setor editorial essa mudança representaria uma oneração de até 12%, alíquota que pode ser ainda maior se considerada toda a cadeia de produção. Segundo Vitor Tavares, presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL), se aprovado integralmente, o projeto de lei que institui a CBS terá grande impacto em toda a cadeia: autores, editores, gráficas, distribuidoras, livrarias e consumidor final. A suspensão da imunidade levaria a um aumento de 20% no preço final do produto.
Acabar com a imunidade tributária será um desinvestimento para o crescimento futuro do Brasil, sem falar no desestímulo ao combate contra a desigualdade. Como se não bastasse, a proposta de taxar e provocar aumento do preço de livros vai na contramão da Lei nº 10.753/2003, que instituiu a Política Nacional do Livro e tem como objetivo garantir seu acesso e uso a todos os cidadãos.
Entidades representativas do livro no Brasil têm se posicionado de forma contrária à reforma, prevendo graves consequências. Elas se uniram no movimento Em defesa do livro, que recentemente lançou um manifesto contra o projeto de taxação e vem realizando uma série de campanhas nas redes sociais para tentar barrar a prevista oneração. O manifesto pode ser conferido na íntegra aqui (https://bit.ly/37uOjMl).
Tavares diz que as entidades estão plenamente conscientes da necessidade da reforma e da simplificação tributária, mas não concordam com o Projeto de Lei nº 3.887/2020, que cria a CBS e não inclui os livros entre as isenções. Para ele, “a imunidade não é um privilégio – ela é concedida em muitos países como base no princípio de que o sistema tributário não deve tratar igualmente setores econômicos desiguais”.
De fato, muitos países têm políticas de imunidade de impostos para livros. Segundo a International Publishers Association (Associação Internacional de Editores), os livros têm tributação zero na maioria dos países da América Latina, como Argentina, Colômbia, Bolívia, Peru e Uruguai. As exceções são Chile e Guatemala. Seguindo as entidades representativas do setor no Brasil, a associação publicou em seu site um documento em que pede ao governo brasileiro que desista de impor a CBS sobre os livros. O texto cita, ainda, o impacto que a pandemia da COVID-19 teve sobre o mercado. “As editoras sofreram em todos os lugares, e o Brasil não é exceção. De acordo com os números da Nielsen Bookscan, no auge da crise (maio de 2020), o mercado brasileiro de livros estava 47,6% abaixo do nível de 2019. Apesar da recuperação, esse mercado ainda está 6,8% menor que no ano passado”, traz a publicação.
Mario Feijó, coordenador do curso de Produção Editorial da Escola de Comunicação da UFRJ, também se posiciona de forma contrária à criação da CBS. Para ele, o fim da isenção chega em um momento muito ruim para o mercado editorial, que ainda se recupera de uma crise financeira somada a tudo que a pandemia da COVID-19 trouxe.
A recessão iniciada em fins de 2014 fez com que os anos de 2015 e 2016 fossem muito difíceis, levando as duas maiores redes de livrarias do país a entrarem em recuperação judicial. O mercado ainda estava se recuperando do calote dado por essas duas redes quando a pandemia de COVID-19 chegou, estrangulando o varejo de livros no país. Para piorar, enquanto planos eram feitos para uma retomada, o governo anunciou a possível tributação do produto livro no Brasil, paralisando mais uma vez decisões e investimentos do setor editorial.
Preços mais altos e repasses para a ponta da cadeia
Segundo Feijó, a consequência da oneração seria o repasse dos custos para o consumidor final – o produto livro ficaria mais caro e seria menos consumido, porque as pessoas estão com pouco dinheiro.
“Quem comprava quatro livros passaria a comprar apenas três. Quem comprava um passaria a não comprar nenhum, ou teria de abrir mão de alguma outra coisa em sua vida. O mercado consumidor encolheria, haveria menos leitores. E quanto menos leitores, menores as tiragens, empurrando novamente o preço final para cima.”
Feijó ainda chama a atenção para outro problema que pode surgir: a seleção feita pelas editoras de quais temas publicar. Segundo ele, com o aumento do consumo de livros, os preços caem e as editoras publicam mais. Há maior diversidade de títulos, autores, temas, formatos. Com consumo baixo, o preço necessariamente sobe e a diversidade de títulos cai, porque o risco de publicar algo realmente novo, diferente, fica alto. Cobrar impostos do produto livro afetará a escolha do que publicar.
Questionado sobre a possível manutenção da imunidade sobre as contribuições no texto da reforma, o Ministério da Economia, por meio de sua assessoria de imprensa, respondeu:
“Os livros gozam de imunidade a impostos prevista no art. 150, VI, “d” da Constituição Federal. Tal imunidade não se estende às contribuições sociais, como a contribuição para o PIS/Pasep e a Cofins. Entretanto, por disposição legal, aplica-se alíquota zero dessas contribuições sobre a receita de venda de livros. A CBS tem como pressuposto a não concessão de benefícios. Nesse sentido, foram eliminadas as hipóteses de alíquota zero (eram mais de cem) antes previstas para a contribuição para o PIS/Pasep e a Cofins. Assim, foi também eliminada a alíquota zero que se aplicava nas operações com livros.”