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Opinião

O Especial da Educação e o Decreto 10.502, de 30/09/2020

Professora da FE fala sobre educação inclusiva e proposta do governo sobre escolas especiais

O que há – ou pelo menos deveria haver – de especial na nossa Educação?

O fato de ela ser para todEs. Isso mesmo. TodEs, com “E” maiúsculo, para, minimamente, tentar representar um pouco mais toda a diversidade que a escola pública contempla.

Historicamente, temos vivido uma espécie de delírio coletivo ao tentarmos nos convencer, e teimosamente agirmos, como se na Educação sempre tivessem existido turmas homogêneas e, consequentemente, de que seria possível adotarmos práticas homogêneas: mesmas formas de ensinar para todos, mesma disposição espacial para todes, mesmas avaliações para todes. Doce ilusão para quem a alimenta. Amarga, para quem sofre seus efeitos: nosses estudantes (sim: nossEs mesmo). A homogeneidade jamais esteve presente na sala de aula. O que sempre esteve presente – e ainda está, salvo raras e louváveis exceções –, é a opressão.

Felizmente, muitos de nós, no passado e no presente, defendemos que a Educação é muito mais do que apenas um aparelho ideológico e assumimos por tarefa a defesa incondicional de sua principal instituição: a escola pública, laica, gratuita e de qualidade para todes. Em assim fazendo, temos advogado esse espaço como lugar de potência criativa e transformadora, luta esta que tem apresentado, em muitos aspectos, importantes conquistas. A título de exemplo, posso citar a recente aprovação do Fundeb com a inclusão do Custo Aluno Qualidade (CAQ), que, se levado a sério, poderá contribuir para sanar importantes lacunas em nossas combalidas Educação e escolas.

Não grifei o “se levado a sério” à toa. Infelizmente, reside aí, nos tempos atuais, um dos maiores desafios de nossa Educação, talvez o maior nunca antes visto, e, consequentemente, da escola pública ─ e por extensão, um dos nossos, trabalhadores da Educação. Refiro-me à impressão que tenho de que vivemos um momento histórico “espetacular”. E o digo não no bom sentido da expressão, mas no sentido de que tudo parece um faz de conta, “coisa para inglês ver”, palco armado e combinado com atores improvisados cuja falta de projeto de Nação nos torna, como país, um elemento risível no panorama internacional e trágico no cenário interno, para dizer o mínimo. Não, mas… esperem. Será mesmo falta de projeto? Ou o projeto seria a própria falta de projeto?

Mônica Pereira
Mônica Pereira, professora da FE | Foto: Arquivo Pessoal

Vejamos. No atual “governo”, já trocamos quatro vezes de ministro da Educação (com direito a um show-manistro entre eles (com o perdão do trocadilho), singing in the rain – é para inglês ver ou não? – me pergunto…). De benéfico, nada fizeram à educação pública. Em compensação, a educação privada tem recebido consideráveis “incentivos” por meio de contratos vantajosos, abonos e outros mais.

Recentemente, como mencionado, conseguimos fazer passar o Fundeb torná-lo permanente, com a inclusão do Custo Aluno Qualidade (CAQ) como referência para o padrão de qualidade, conforme prevê o Art. 211 de nossa Constituição (que, a propósito, em seu §5º afirma que “a educação básica pública atenderá prioritariamente ao ensino regular”. Regular, entendem? Não especial!). Vitória! Só que mais ou menos. Dias depois, ficamos sabendo que o governo federal pretendia utilizar dinheiro do Fundeb para bancar seu programa de substituição do Bolsa Família…

Um “pacotinho” atrás do outro e, ao olharmos para a totalidade, vemos um grande pacotão de políticas públicas em Educação, lá e cá, que juntas, olhadas em contexto, comprovam a seguinte tese: o projeto é entregar o que é público às leis do mercado. E subverter o que era direito em mercadoria. Quem puder comprar, ótimo. Quem não puder, fique para trás. Talvez você não tenha se “esforçado” o suficiente. E ainda há colegas que defendem o tal do mérito…

Um desses “pacotinhos” veio com o nome de Decreto 10.502, no dia 30 de setembro de 2020. Supostamente, ele “institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida”.

Em que pese o título que tenta impressionar (e, a meu ver, fracassa terrivelmente) para a tal política, é preciso dizer que trata-se de mais um pacote, desta vez oriundo do campo da educação especial, que vai contra todo o especial da educação que afirmei no início deste texto: o fato de ela ser para todes. Explico.

Para começar, o decreto é inconstitucional, por pelo menos dois motivos: 1) porque discrimina com base na deficiência ao abrir a possibilidade de que escolas e classes especiais voltem a proliferar país adentro, movimento que estava em declínio desde 2006 em todo o mundo, inclusive no Brasil; 2) porque fere frontalmente a Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (2006), a mesma que incitou ao declínio de instituições segregadas mundo afora, e que no Brasil tem status de Constituição, conforme reza o decreto que a promulga (o de nº 6.949, de 25 de agosto de 2009).

O citado Decreto 10.502 a fere ao apelar para um alegado direito da família de escolher o melhor ambiente escolar para seus filhos com deficiência.

Ocorre que essa escolha, que é educacional,segundo o fatídico decreto, é feita por uma equipe multidisciplinar, cuja maioria é da área da saúde. Oi?? Saúde ditando qual a melhor forma de educação??

Muito esquisito… Sendo que na referida Convenção (e, portanto, também em nossa Constituição) fica claro que Educação é direito inalienável, o que significa dizer que está dado e posto, sendo impossível que alguém lhe tome (o que seria o caso, se familiares ou mesmo profissionais decidissem pela pessoa com deficiência).

Ademais, o fracasso de escolas e classes especiais já há muito tem sido comprovadamente pior do que qualquer outro fracasso escolar, pois tais instituições oferecem tratamentos clínicos e não experiências educacionais, em sua vasta maioria. Sem contar que sobrevivem à custa de subsídios estatais – o seu, o meu, o nosso dinheiro –, extraídos da educação de todes para se dirigir a um setor assistencialista e clínico, cujos resultados educacionais são pífios, simplesmente porque não é esse o seu foco de trabalho! Ora, façam-nos o favor!

Em segundo lugar, o Decreto 10.502 (assim como vários outros que preenchem o que chamei de “pacotão”) nos leva a crer, com o que acima expus, que o tal projeto de sociedade previsto neste “governo” é mesmo desmantelar de vez o que já vinha sendo desmantelado há vários governos (com algum alívio entre um e outro): a coisa pública em prol de sua mercadorização, ou privatização, caso prefiram. Isso fica claro quando, em diversos momentos do documento, atribui-se a equipes multidisciplinares (que não da área da Educação) a responsabilidade por uma série de decisões educacionais importantes a respeito da vida estudantil de pessoas com deficiência.

Trata-se, a meu ver, de um mal disfarçado chute na autonomia da escola e dos profissionais da educação de exercerem seu protagonismo naquilo que lhes cabe e de “passar o abacaxi” a entidades privadas de cunho assistencialista e clínico, cujos saberes, esses sim, passam a ser autorizados e, pior, financiados pelo Estado em detrimento do investimento na escola pública e naquilo que é direito, como já dito, inalienável, de cada um de nós: a educação pública (com todes juntes), laica, gratuita e democrática.

Um terceiro aspecto bastante complicado é a retomada do uso de uma ideia já superada em nossa legislação referente a pessoas com deficiência desde 2009, quando da promulgação da Convenção em nossa Constituição pelo citado Decreto 6.949/09: o “de que estudantes com deficiência deveriam estudar ‘preferencialmente’ na rede regular de ensino”. Ora, se a educação para todes é direito inalienável, não tem “preferencialmente”, cares amigues. Todes temos que estar juntes, e aprendermos mutuamente o que é conviver, o que são nossas limitações e potências.

O que as pessoas que defendem a segregação entre pessoas esquecem, na maioria das vezes, é o aspecto ético-político da inclusão: o quanto a sociedade aprende e se transforma com a convivência. Não sei o que é ser negra sendo branca no Brasil, ou ter uma deficiência, ou ser trans, mas posso desenvolver um mínimo de empatia e solidariedade à dor e sofrimento pela condição humana de ser discriminado por ser mulher, por estar ficando idosa e, acima de tudo, por conviver com pessoas que sofrem outros preconceitos e discriminações em nome dessas desculpas inexplicáveis e imperdoáveis que utilizamos para segregar, humilhar, separar e discriminar – e assim tornar-me uma tremenda aliada de causas que deveriam ser afins. O fato é que esse decreto vem para nos separar ainda mais, lamentavelmente.

Um quarto aspecto digno de menção é a profusão de novos nomes. O decreto cria algumas categorias, como Educação Bilíngue de Surdos e Escolas e Classes Bilíngues de Surdos e Escola Regular Inclusiva, além de manter as já conhecidas Escolas Regulares e Escolas e Classes Especiais. Há mais a comentar, mas vamos ficar por aqui. O que dizer de uma escola bilíngue de surdos? As escolas bilíngues que já existem não são suficientes? Ou será que só surdos poderão aprender Libras? Teremos que criar, em última instância, um Brasil Bilíngue de Surdos também? Que fique claro: sou completamente a favor do uso da Libras.

Por todes, por todes mesmo. Para isso, precisamos que todas as escolas sejam bilíngues, desde a pré-escola, principalmente. Para que todes nós, um dia, sejamos um país realmente bilíngue. E nós, adultes e idoses, que não tivermos tido essa oportunidade desde a tenra infância, precisamos conviver com vocês, surdes, porque o curso de Libras (aliás, nenhum curso de língua. É preciso conviver!) pode até nos deixar proficientes, mas não dá conta de nos deixar fluentes.

E as escolas regulares? Nunca entendi muito bem essa ideia. Quer dizer que outras escolas seriam irregulares? Ok, ok. É verdade que nos acostumamos a usar o termo “escola regular” para compreendê-lo como o que chamo de escola de todes, a nossa boa e velha escola pública. Mas “escola regular inclusiva”? Me parece um tanto exagerado, já que a escola de todes a que me referia, por natureza, por ser para todes – e ser a única que assim o é – já é, naturalmente, “inclusiva”. Pois é isso que é inclusão.

Enganam-se aqueles que pensam que inclusão tem a ver apenas com a educação de pessoas com deficiência. A isso chamamos de Educação Especial. E trata-se de um conjunto de técnicas e metodologias que podem acontecer em qualquer escola, não precisa ser em escola nem classe especial, eis o seu caráter de inclusão. Educação Especial, aliás, não se confunde com escola nem classe especial (essas sim, apenas locais segregados, separatistas, apartheidistas, em que tratam – muito mais do que educam – pessoas). Educação Especial, portanto, se disponível e ao alcance de todos que dela precisarem, é inclusiva.

Inclusão em Educação, por outro lado, ainda que possa compreender a educação especial, é mais do que ela, porque não se resume a métodos e técnicas, mas representa princípios ético-políticos vinculados a Direitos Humanos, Justiça Social e ao princípio de Igualdade, valores muito distantes do “governo” atual.

Desse modo, Inclusão em Educação tem a ver com combater exclusões, desigualdades, preconceitos, discriminações, injustiças, por todos os meios possíveis, inclusive (mas não apenas) pedagógicos, englobando a didática, o currículo, a concepção de docência e nossas práticas, a construção de nossos conhecimentos, o repensar nossas relações e hierarquias e muito mais, numa base cotidiana, de forma a trazer à tona todo o especial de nossa educação (a democracia, a cidadania, o direito à participação, a quebra de barreiras, o convívio), e não o que há de pior nas práticas de uma velha, ultrapassada educação especial, como a segregação, o enclausuramento, o não asseguramento do direito fundamental à educação detodes e comtodes.

E, assim, terminamos este texto com um retorno ao seu início e título, que agora, espero, faça mais sentido a quem o lê: o famigerado Decreto 10.502, ao ressuscitar uma Educação Especial nefasta, equivocadamente confundida com instituições que segregam, reprimem, oprimem crianças e jovens como se fossem seres incapazes e sem direitos, extrai de toda a nossa Especial Educação o que ela tem de melhor a nos oferecer: a convivência, a aprendizagem e os processos civilizatório e democrático, comtodes, portodes e paratodes.

*Mônica Pereira é professora da Faculdade de Educação (FE) e coordenadora do Laboratório de Pesquisa, Estudos e Apoio à Participação e à Diversidade em Educação (Lapaede).