Nestes 100 anos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), houve muitos avanços e luta pela equidade e diversidade étnico-racial. Cabe salientar que a UFRJ se destaca entre as maiores e melhores universidades do mundo em ensino, pesquisa e extensão. No que diz respeito à ampliação e democratização, as ações afirmativas, no modelo de cotas raciais e sociais, implementadas em 2012, inauguram um cenário ajustado à luta da militância negra de longas datas.
A UFRJ, instituição de ensino, pesquisa e extensão, constitui pessoa jurídica de direito, autarquia de natureza especial, dotada de autonomia didático-científica, administrativa, disciplinar e de gestão financeira e patrimonial. Nesse âmbito, o objetivo principal da UFRJ é completar a educação integral do estudante, buscar e ampliar os conhecimentos, preservar e difundir a cultura. Além disso, exercer atividades gerais de educação, pesquisa, ensino e extensão, criação artística e literária e difusão da cultura. Ademais, a Universidade realiza outras atividades especiais, voltadas para a comunidade universitária, a comunidade nacional e a comunidade internacional (UFRJ, 2007).
Em 7/9/1920 foi criada uma das maiores universidades do país. Nesse sentido, o ato de fundamentação é resultado de um ato político de justaposição de instituições de ensino superior pré-existentes: a Faculdade de Medicina, a Escola Politécnica e a Faculdade de Direito. Apesar do histórico predito, o primeiro reitor da UFRJ, Galvão (1920 apud UFRJ, [199-]), assinala que a gênese da instituição realça a consumação de uma universidade fragmentada, elitista e patrimonialista.
A UFRJ possui, aproximadamente, 176 cursos/habilitações de graduação na modalidade presencial e a distância (UFRJ, [2018]) e 502 cursos de pós-graduação nas modalidades lato sensu e stricto sensu, distribuídos em sete Centros Universitários. São eles: Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza, Centro de Letras e Artes, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, Centro de Ciências da Saúde, Centro de Tecnologia e Fórum de Ciência e Cultura.
No tocante aos avanços para a população negra e pobre, em 2011 a ação de dois conselheiros de ensino, Marcelo Paixão e Tadeu Allencar, foi fundamental para a mudança em seus quadros. Os dois intelectuais apresentaram as seguintes propostas, respectivamente: inclusão do critério étnico/cor na política de ações afirmativas e acréscimo, ao critério social, de porcentagem destinada a garantir o ingresso de estudantes autodeclarados, no ato da inscrição, negros ou índios. A proposta foi rejeitada pela maioria dos conselheiros, com promessa de ser discutida posteriormente, em nova sessão.
Em perspectiva comparada, com o indeferimento, em 13/9/2012, a temática voltou a ser discutida no Conselho Universitário (Consuni) da UFRJ após a promulgação da Lei n.o 12.711, de 29 de agosto de 2012, que associou ao critério social o racial, para ingresso nas universidades federais e institutos federais de ensino (Ifes). A discussão se ateve ao cumprimento da Lei para o ingresso na UFRJ no ano subsequente (UFRJ, 2012).
Em termos pragmáticos, a partir dessa medida, houve a ampliação e democratização do acesso: a UFRJ recebeu alunos(as) de distintas áreas do país, de diferentes culturas, cores/etnias, realidades socioeconômicas, em diversas modalidades de ação afirmativa (cotas). De modo geral, as modalidades de ingresso por cota são: cota de escola pública; cota de renda e escola pública; cota racial e de escola pública; cota racial, de renda e de escola pública; cota de pessoa com deficiência e cota racial de pessoa com deficiência. Doutro modo, as ações afirmativas são políticas focais que alocam recursos em benefício de pessoas pertencentes a grupos discriminados e vitimados pela exclusão socioeconômica no passado ou no presente. Trata-se de medidas que têm como objetivo combater discriminações étnicas, raciais, religiosas, de gênero ou de casta, aumentando a participação de minorias no processo político, no acesso a educação, saúde, emprego, bens materiais, redes de proteção social e/ou no reconhecimento cultural (Geema). Em linhas gerais, são medidas que englobam tanto a promoção da igualdade material e de direitos básicos de cidadania, quanto formas de valorização étnica e cultural. Esses procedimentos podem ser de iniciativa e âmbito de aplicação públicos ou privados e adotados de forma voluntária e descentralizada ou por determinação legal (idem).
Em tela está a transformação do perfil do corpo discente no ensino superior, tanto na rede pública, quanto na privada. A democratização do acesso à UFRJ contribui para o aumento da população negra com ensino superior completo. Em consonância, a medida expôs o racismo estrutural e institucional vivenciado dentro e fora da instituição pelo povo negro. Segundo Almeida (2018), uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento e se apresenta por meio de ações conscientes e/ou inconscientes, as quais deságuam em assimetrias, benefícios a depender do grupo racial ao qual pertençam (ALMEIDA, 2018, p.25). Em simetria, no conjunto de perspectivas analíticas, descortinamos que o marcador étnico-racial quanto à pauperização específica da população negra e em situação de vulnerabilidade social responde à face individualista do racismo. Ou seja, de acordo com Guimarães, o racismo se apresenta como uma deficiência patológica, decorrente de preconceitos, institucional, pelo qual se conferem privilégios e desvantagens a determinados grupos, em razão da raça, normalizando esses atos, por meio do poder e da dominação estrutural. Essa dominação, diante do modo normal com que o racismo está presente nas relações sociais, políticas, jurídicas e econômicas, faz com que a responsabilização individual e institucional por atos racistas não seja dirimida a reprodução da desigualdade racial (GUIMARÃES, 2012, p.52). Doutro modo, o racismo estrutural, “uma forma de violência reproduzia no tecido social não mais na forma direta, mas nas formas institucional e cultural” (Idem).
De acordo com o Ministério da Educação (MEC) (2013), com a política afirmativa de reserva de cotas, o acesso permitiu o acesso a aproximadamente 150 mil estudantes negros em instituições de ensino superior em todo o país (2013-2015). Segundo o MEC, em 1997, o percentual de jovens negros, entre 18 e 24 anos, que cursavam ou haviam concluído o ensino superior era de 1,8% e o de pardos, 2,2%. Em 2013, esses percentuais já haviam subido para 8,8% e 11%, respectivamente. No entanto, o ideal é o percentual de 50% de alunos pretos, pardos e pobres (MEC, 2013).
Convém frisar que, na pesquisa sobre “Desigualdade racial no Brasil: evolução das condições de vida na década de 90”, Henriques (2001, p. 26) constatou que “55% do diferencial salarial entre brancos e negros está associado à desigualdade educacional e outra parte da herança da discriminação educacional infligida às gerações dos pais dos estudantes” (HENRIQUES, 2001, p. 26). Dessa forma, os dados preditos indicam que o racismo é estruturante das desigualdades a que está submetida a população negra, pois incide sobre ela e determina as suas condições sociais por gerações. Como elemento de estratificação social, o racismo se materializou na cultura, no comportamento, nos valores dos indivíduos e nas organizações sociais da sociedade brasileira, uma estrutura desigual de oportunidades sociais para os negros.
Em termos históricos, Guimarães (2003) identificou que, em meados dos anos de 1970, algumas parcelas da sociedade brasileira, principalmente a classe média negra, já sentiam os efeitos da política educacional desigual. Como disse Santos (1985), os jovens negros, para titularem-se, tinham de recorrer à rede particular de ensino superior, obtendo diplomas desvalorizados no mercado de trabalho, que acentuavam ainda mais a discriminação racial de que eram vítimas. Segundo o autor, foram justamente os negros os primeiros a denunciarem, como discriminação, o relativo fechamento das universidades públicas brasileiras aos filhos das famílias mais pobres, que, na concorrência pela melhor formação em escolas de 10 e 2o graus, eram vencidas pelas classes média e alta. As provas de exame vestibular para o ingresso nas universidades públicas passaram a ser realizadas, portanto, num contexto de grande desigualdade de formação, motivada principalmente pela renda familiar. Jovens de classe média e alta, que podiam cursar as melhores e mais caras escolas elementares e de 2o grau, praticamente abocanhavam todas as vagas dispostas. De fato, o diagnóstico técnico sobre o caráter racial das desigualdades sociais brasileiras já era internacionalmente conhecido desde os anos de 1980 (apud Silva, 1978: Hasenbalg, 1979).
No cômputo geral, em seus 100 anos, a UFRJ compõe o conjunto das universidades públicas brasileiras que aderiram às cotas raciais e sociais, bem como apresenta importante marco na luta por igualdade racial. Entretanto, o percentual de pretos(as) e pardos(as) dentro da instituição ainda precisa aumentar exponencialmente, bem como as políticas de assistência e auxílio estudantil tomarem escopo prioritário nas ações da Universidade. Em suma, o enfrentamento recai não só sobre o processo de democratização ao acesso, mas também concernente à permanência, conclusão dos cursos de graduação e pós-graduação por pretos, pardos e outras minorias identitárias relacionadas a gênero e sexualidade, assim como ao enfrentamento do racismo institucional. Essas temáticas devem ser acomodadas de modo central nos colegiados e demais instâncias deliberativas da UFRJ. Paralelamente, deve-se privilegiar a formação de um corpo docente representativo do retrato da sociedade brasileira, qual seja 55% de negros(as) e pardos(as) (IBGE, 2019), contribuindo, assim, para a dissipação das deformidades historicamente construídas.
Fernanda Barros é professora Adjunta do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (Nepp-DH) da UFRJ, doutora em Ciência Política pelo Departamento em Ciência Politica (ICHF)/UFF, mestra em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IH/PPGHIS), licenciada pela Faculdade de Educação da UFRJ, graduada em Ciências Sociais pelo IFCS/UFRJ.
Nota da edição: Este artigo é parte do Especial UFRJ 100 Anos, publicado em setembro pelo Setor de Comunicação da Decania do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (Secom/CFCH) da UFRJ. Em seus textos, servidores docentes e técnico-administrativos, discentes e trabalhadores terceirizados produziram reflexão sobre a Universidade no ano em que ela completou um século de existência. A proposta foi apresentar visões, experiências e saberes de quem contribui para que a UFRJ mantenha a sua excelência, produza conhecimento plural, diverso e democrático, apesar de todos os desafios impostos.
Referências citadas pela autora:
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GUIMARÃES, ANTONIO SÉRGIO ALFREDO. Acesso de negros às universidades públicas. Cadernos de Pesquisa, n. 118, março/2003, Cadernos de Pesquisa, n. 118, p. 247-268, março/2003.
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