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Como deve ser a universidade do futuro?

Na celebração do centenário da UFRJ, uma conversa desafiadora com Paulo Artaxo, Silvio Almeida e Debora Diniz

A celebração do centenário da UFRJ, realizada nos dias 7 e 8/9, foi marcada por atividades virtuais das mais variadas: exibição de documentário, apresentações culturais, debates, homenagens. Uma conversa estabelecida no fim da tarde de terça-feira, intitulada “A universidade do futuro: a ciência e o mundo pós-pandemia”, merece destaque. Na ocasião, Denise Pires de Carvalho, reitora da UFRJ, Carlos Frederico Leão Rocha, vice-reitor, e Tatiana Roque, coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura (FCC), receberam docentes e pesquisadores renomados, oriundos de outras instituições, para falar sobre os desafios de seguir adiante.

Que perguntas a Ciência deve fazer? Que respostas a sociedade espera? Que caminhos a Educação deve seguir? “O momento é de reflexão e, quiçá, de autocrítica”, anunciou Roque, curadora e mediadora do encontro. Paulo Artaxo, da Universidade de São Paulo (USP), Silvio Almeida, da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), e Debora Diniz, da Universidade de Brasília (UnB), analisaram a conjuntura e ofereceram algumas respostas. Nossa reportagem acompanhou o debate e reuniu os principais momentos.

Para discutir o futuro, UFRJ recebeu Paulo Artaxo, Silvio Almeida e Debora Diniz | Foto: Coordcom/ UFRJ

No presente, as crises

Como investigador da Física aplicada a questões ambientais, Artaxo expôs a tese de que o mundo passa por três graves crises: as mudanças climáticas, a perda de biodiversidade e a pandemia. O que elas têm em comum, segundo o professor, é o fato de serem resultado da superexploração da natureza. Tendo alterado a composição atmosférica do planeta, a espécie humana inaugurou sua própria era geológica – o Antropoceno – e sofre as consequências disso. “A crise da COVID-19 ainda pode durar mais um ou dois anos, talvez um pouco mais; já a crise climática vai durar séculos e a perda de biodiversidade é para sempre”, alertou o professor.

No cerne das transformações devastadoras, estão práticas como o desmatamento, as queimadas, a monocultura, a produção excessiva de gás carbônico e outras poluições. “É importante a gente saber que milhares de vírus habitam a fauna e a flora na Amazônia, por exemplo, e o desmatamento pode facilitar a migração desses vírus para a nossa sociedade”, salientou. As crises estão interligadas, assim, pela ação humana, mas, também, por decisões políticas e econômicas que enxergam o mundo em curtíssimo prazo, sem uma articulação sistêmica. “Basta ver que, no combate ao coronavírus, por exemplo, cada região, estado ou município agiu de uma forma. E o Brasil não foi o único que falhou”, comentou.

Para superar as três crises, Artaxo aposta na “governança global baseada em critérios científicos” e defende como prioridade o combate ao aquecimento global. “Algumas regiões do Nordeste brasileiro já aqueceram 2.3 graus e, na trajetória que estamos indo, podemos levar o planeta a se aquecer de 4 a 5 graus”, destacou. Redução de chuvas, destruição de florestas, seca, migrações em massa, inundações e degradação do solo estão na lista de impactos provocados por esse aumento de temperatura, o que faz com que as consequências, no futuro, sejam ainda piores. “A pergunta é: vamos esperar a temperatura aumentar para agir seriamente?”

Da superação da crise climática depende a sobrevivência do planeta e saída, para Artaxo, é a “governança global baseada em ciência” | Foto: Nasa

A urgência da transformação social

Silvio Almeida se debruçou sobre outra crise: a econômica. “Entendo aqui um campo amplo, que não está restrito à produção. Estou falando da crise do capitalismo e das formas sociais vigentes”, definiu. Para o advogado, filósofo e professor, é importante reconhecer que o modelo que rege a vida planetária, ancorado em exploração, acumulação e desigualdade, é propulsor das demais crises e já não se basta.

No Brasil, essa conjuntura acirra e aprofunda, por exemplo, o subdesenvolvimento e a dependência em diversas áreas, inclusive, na produção de conhecimento; o autoritarismo e a ausência de uma cultura democrática; o racismo e a violência praticada contra afrodescendentes e indígenas. E para enfrentar velhos fantasmas, segundo Almeida, a universidade precisa se posicionar de forma crítica.

“Como deve ser a universidade que se coloca como protagonista dos processos de transformação social?”, questionou. E sugeriu: “A universidade deve retomar seu processo de conscientização política, fortalecendo a cultura popular. Tem de aprender com aquilo que está sendo feito fora da instituição. Tem de se tornar um lugar de recolhimento de conhecimentos e tecnologias que estão sendo desenvolvidos nas periferias e permitindo que o Brasil não seja destruído definitivamente. Essas experiências existem e precisam ser acompanhadas, sistematizadas, para novos desenhos sociais”. Na esteira das prioridades, o professor reforçou: “É preciso conectar a luta por renda básica com o fortalecimento dos direitos sociais”.

Racismo e violência do Estado contra o povo se intensifica em tempos de crise. Para Silvio Almeida, universidade deve fortalecer cultura popular | Foto: Douglas Lopes (Jornal Maré de Notícias)

O espaço da “palavra valente”

Debora Diniz saudou a reitora da UFRJ lembrando que, no passado, uma mulher jamais poderia ocupar tal posição. Mantendo o lirismo e a tensão dos narradores, a antropóloga observou a passagem do tempo, destacando que “vivemos melhor do que há 100 anos”, mas que ainda “somos terrivelmente injustos”. Ela lamentou o fato de as relações sociais ainda serem baseadas na desigualdade de classe, de raça e de gênero. “Desgraças ainda nos acompanham. A comparação do tempo não me consola.” E exemplificou, indagando: “Por que não respeitamos as regras de proteção à saúde pública em uma pandemia? Por que continuamos racistas, sexistas, homofóbicos? Por que perseguimos mulheres e meninas? Por que destruímos as terras indígenas? Por que não fomos capazes de acabar com essas injustiças?”.

Sua fala foi dedicada à reflexão sobre o papel da universidade. Para isso, a professora trouxe uma definição que permeou todo o seu texto e deve reverberar adiante: a universidade é o espaço de produção da “palavra valente da verdade”. Verdade, reforçou ela, no singular, mas não necessariamente absoluta. Verdade, sim, como conhecimento produzido, validado pela comunidade científica e posto à prova pelo “povo que vive a vida”. “Erra quem pensa que um pesquisador define sua agenda de pesquisa. Quanto mais aberta estiver a nossa porta para as necessidades do mundo, mais valente será a produção da verdade.”

Diniz evocou o protagonismo popular, assim como Almeida. E pediu coragem aos cientistas, sobretudo para escutar. “O que fazemos na universidade é nos somar às sobrevivências do povo, oferecendo a palavra, a reflexão e a dúvida sobre os desafios do nosso tempo”, delimitou. E finalizou lembrando de uma ex-aluna ilustre da UFRJ: “Conceição Evaristo, quem incomoda e nos oferece imaginação”.

A “palavra valente” terá força se universidade estiver aberta às necessidades do mundo, disse Debora Diniz. Na imagem, a Baía de Guanabara | Foto: Ana Marina Coutinho (Coordcom/UFRJ)

Universidade deve ser transdisciplinar e solidária

Carlos Frederico Leão Rocha e Denise Pires de Carvalho teceram os comentários finais, destacando a urgência na mudança dos modos de ensinar e pesquisar diante do que está posto. Eles defenderam, em linhas gerais, a transdisciplinaridade e um referencial de formação para além das exigências do mercado.

O vice-reitor, que é professor do Instituto de Economia (IE), destacou as consequências da automação na produção mundial. “Calcula-se que entre 30 e 40% dos postos de trabalho existentes hoje estejam em perigo nos próximos dez anos, em razão da substituição da mão de obra humana por robôs.” Além do desemprego, ele reforçou o que Almeida já tinha dito: sem transferência de renda e luta por direitos sociais, as desigualdades aumentarão. Como possibilidade, Rocha vislumbra uma reorganização institucional: “É preciso alterar o modo como formamos professores, entendendo a transversalidade do conhecimento. Não há emprego seguro relacionado à especialização. Precisaremos desenvolver habilidades em áreas pouco relacionadas”.

Já a reitora, médica e professora do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF), demonstrou sua indignação com a proposta da “imunidade de rebanho” no tratamento da COVID-19, algo considerado por ela como “inadmissível” em se tratando de um vírus “selvagem”. Ela também destacou a importância de a humanidade se enxergar como espécie animal, parte do mundo natural, para, assim, retomar seu humanismo. “É preciso olhar para o ser humano ultrapassando a questão econômica”, concluiu.