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Que teus olhos sejam atendidos, Beirute!

Professora da UFRJ presta homenagem à “mãe do mundo” e retoma legado de intelectuais libaneses que viveram no Brasil

Vivemos tempos de COVID-19. Tempos dramáticos, marcados por inquietações, por incertezas, desastres humanos e ambientais que nos remetem a várias reflexões sobre os nossos atos e ações, sobre o sentido do justo e da justiça, sobre o sentido da vida e das nossas circunstâncias, sobre como estamos cuidando do nosso tempo, da nossa história, como estamos construindo o nosso futuro.

E hoje, em razão dos últimos acontecimentos no Brasil e no mundo, notadamente no Líbano, alvo da tragédia explosiva que assolou Beirute, resolvi falar de dois libaneses, duas figuras inspiradoras, de grande relevância no âmbito universitário brasileiro, na minha vida e na minha formação, prestando, ao mesmo tempo, uma homenagem a essa linda cidade, responsável pelo renascimento das letras árabes e que, no dizer do poeta sírio, escritor, editor, diplomata, Nizar Qabbani, é considerada “a mãe do mundo”.

Diversas culturas e visões de mundo se encontram em Beirute | Foto: Djedj (Pixabay)

Dois libaneses resilientes, amorosos, generosos, hospitaleiros, com sólida formação humanista, linguística e literária. São eles: Alphonse Nagib Sabbagh − professor, pesquisador, idealizador e criador do Setor de Estudos Árabes da Faculdade de Letras, do Departamento de Letras Orientais da UFRJ, nosso Monsenhor; e Salim Miguel − escritor, cineasta, jornalista, roteirista, editor e gestor cultural, que dirigiu a Editora da Universidade Federal de Santa Catarina de 1983 a 1991. Duas expressões humanas que dignificaram as instituições em que atuaram e que agiram concretizando a missão da universidade aberta aos povos e aos saberes, comprometida com a produção do conhecimento inovador e libertador, atenta a cuidar e se reconciliar com as circunstâncias.

Alphonse Nagib Sabbagh sempre foi uma liderança amorosa e, em entrevista concedida para o Jornal da UFRJ, em 2009, antes de completar os seus 90 anos, conta que, quando estudava em um pequeno colégio episcopal da sua cidade natal, no Líbano, desde criança, percebia uma intensa aproximação entre a vocação religiosa e o magistério.

Ao concluir o seminário, complementando os estudos em Filosofia e Teologia na Europa, passou a dedicar parte do seu tempo ao seu outro sacerdócio: o acadêmico-cultural. E foi no Brasil, sobretudo na Faculdade de Letras (FL) da UFRJ, que Monsenhor Alphonse fez do seu encontro com a vocação acadêmica uma carreira plena em excelentes realizações, criando o Setor de Estudos Árabes da FL e elaborando o primeiro dicionário português-árabe, uma das mais relevantes obras da lexicografia árabe-lusófona editadas no Brasil.

As dificuldades de aplicar um método para o ensino do idioma sem um material didático específico foram a sua principal motivação para a elaboração do dicionário. “Começamos a dar aula de língua árabe, mas não tínhamos manuais, gramáticas nem dicionários do árabe para o português ou do português para o árabe. Começamos na faculdade, em fichas, tudo manuscrito, a reunir as palavras e fazer as traduções. Assim nasceu o primeiro dicionário”, recorda Alphonse [em entrevista concedida ao jornalista Márcio Castilho − clique aqui para ler].

Monsenhor Alphonse quando concedeu entrevista ao Jornal UFRJ | Foto: Marco Fernandes (Coordcom/UFRJ)

Fui, com muito orgulho, sua aluna, e com ele, ainda no começo da minha graduação, iniciei-me na pesquisa filológica, linguística e literária. Um mundo novo se abria, estava eu desvendando a língua do segredo. Ele era uma figura admirável, adorável e plena em sabedoria! Suas aulas eram sempre inspiradoras e reveladoras.

Para ele, “o dicionário era a expressão de um trabalho didático e profissional acumulado para traduzir a riqueza de uma língua e da cultura de um povo, que depois se tornaria instrumento de trabalho”. Dizia não existir ensino de língua árabe ou qualquer outra língua sem dicionário. Considerava “a Universidade como a sementeira da cultura, atuando a serviço da sociedade”. Monsenhor Sabbagh contribuiu essencialmente para a formação específica, humanista e holística de cada um de nós, seus alunos e colaboradores.

Para Nagib Sabbagh, “o ser humano, para progredir, tem que vencer todas as dificuldades que eventualmente encontra na vida. O sacrifício faz parte da religião e, também, da cultura. A religião não é obscurantista no sentido de fazer com que as pessoas acreditem naquilo que elas não conhecem. A religião pode e deve caminhar com a cultura e a ciência para vencer muitos problemas, tanto sociais como individuais”.

Já o libanês Salim Miguel teve um percurso singular pela cultura brasileira. Sua obra literária e atuação como gestor cultural fizeram com que ganhasse admiráveis prêmios e distinções, como o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto de sua obra (2009), reconhecimento máximo conferido pela Academia Brasileira de Letras; o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal de Santa Catarina (2002) e o prêmio Juca Pato de Intelectual do Ano (2002) da União Brasileira de Escritores (UBE-RJ).

O premiado Salim Miguel foi professor da Universidade Federal de Santa Catarina | Foto: Acervo UFSC

Foi homenageado como personalidade com o troféu Franklin Cascaes de Cultura por sua atuação como gestor cultural. Ele contribuiu, com a sua experiência e generosidade, para a criação da Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), já que havia sido o responsável pela criação da Editora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tornando-a um dos principais agentes da criação da Associação Brasileira de Editoras Universitárias. E, por curiosidade, o primeiro livro a ser publicado pela Editora da UFRJ, em parceria com a Editora Ao Livro Técnico, foi o dicionário de português-árabe de autoria de Alphonse Nagib Sabbagh. Na ocasião, foi a obra mais vendida da Editora da UFRJ.

Salim Miguel − que chegou ao Brasil vindo do Líbano com seus pais, na década de 20 do século XX −, com mais de sessenta e quatro anos de sólida aventura literária, marcou a sua obra com ousadia, transgredindo os cânones do seu tempo, e soube, como ninguém, iluminar a palavra. Ele foi, inicialmente, alfabetizado em alemão, em Santa Catarina, quando de sua infância em Biguaçu, cidade de colonização alemã, na Grande Florianópolis. Mais tarde, após aprender a ler em português, lia em voz alta para um velho cego, como fazia o personagem Jorge de Burgos, em O Nome da Rosa, conhecida homenagem que Umberto Eco fez a Jorge Luís Borges. Lia desde nomes sem importância até as obras de Schopenhauer. O menino da aldeia de Koura, a mesma de meu avô, ao chegar ao Brasil, ouvia não somente o árabe, mas também o alemão e o português. Quantas línguas, quantas vozes, quantos olhares, quantas luzes!

Dentre suas excelentes e festejadas obras, destaco Nur na Escuridão, romance merecidamente premiadíssimo, que foi traduzido, quando Salim ainda era vivo, para o árabe e lançado no Líbano, com o apoio de Roberto Khatlab, diretor do Centro de Estudos e Culturas da América Latina da Universidade Saint-Esprit de Kaslik e pesquisador no Centro de Estudos da Emigração Libanesa da Universidade Notre Dame, no Líbano. O referido romance em árabe recebe o título De Koura ao Brasil, ida… retorno (vale uma leitura mais detalhada sobre o assunto no portal do Instituto da Cultura Árabe).

Para quem não sabe, nur é “luz”; Salim significa “o íntegro”, “o pacificador”, vem da raiz salam, “paz”; e layla significa “noite”. Nur na Escuridão é o romance que, na minha opinião, de alguma forma, contém todas as obras de Salim. É como Beirute, que é, além de uma cidade universitária, universal, pois possui, na sua essência, todas as regiões libanesas, todas as regiões do mundo, todos os credos e etnias, todos os sons, todos os sabores e saberes. Beirute é a conexão viva das culturas em contato. A ele, Salim Miguel, dediquei o ensaio “Layla Iluminada” no livro Salim na Claridade, editado pela Fundação Catarinense de Cultura, em homenagem aos seus 50 anos de produção literária no Brasil.

E por que falar de Alphone Nagib Sabbagh e Salim Miguel? Porque falar deles é homenagear Beirute e todos os libaneses do mundo, é um passo para ampliar a nossa autoestima e o nosso autoconhecimento, uma possibilidade de se conectar com os outros milhões de pessoas espalhadas por todo o planeta. Como diz Roberto Duailibi, na apresentação do livro História Ilustrada do Líbano: “a consciência da origem comum cria, naturalmente, uma solidariedade espontânea, que facilita o diálogo e o entendimento entre as pessoas e os povos”.

Homenagear a “mãe do mundo” é também se solidarizar com sua população | Foto: Djedj (Pixabay)

Além disso, ao falar da obra desses dois cidadãos do mundo, tem-se a dimensão do que eles fizeram, com empatia e compaixão, pelo Brasil, pelas letras e pela cultura, desde sempre, em prol da humanização e da evolução das pessoas. E, neste momento tão atípico de nossas vidas, homenageá-los é reconhecer a relevância da lição de Antonio Candido, crítico literário, ensaísta, professor, defensor da literatura como direito humano básico, porque ela se manifesta universalmente através do ser humano e, em todos os tempos, ela tem função humanizadora.

Candido assevera que não há um ser humano sequer que viva sem alguma espécie de fabulação, pois ninguém é capaz de ficar as vinte quatro horas de um dia sem momentos de dedicação ao “universo fabulado”. Diz que ela “parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito”. A literatura é, para ele, “o sonho acordado da civilização”, e assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem sonho durante o sono, “talvez não haja equilíbrio social sem a literatura”. É por essa razão que a literatura é fator indispensável de humanização e confirma o ser humano na sua humanidade, por atuar tanto no consciente quanto no inconsciente. Não podemos esquecer que para evoluirmos bem precisamos desenvolver a autoconsciência e o autoconhecimento, e a literatura também contribui para isso.

Salim compreendia esse valor da literatura como ninguém e, em Apontamentos sobre o Meu Escrever, observa que começou a escrever ainda antes de começar a ler. Quando criança, costumava rabiscar em alguns pedaços de papel de embrulho da venda do pai, recortando letras de jornais e almanaques, e com isso imaginava estar escrevendo uma história, que depois contava aos amigos da vizinhança reunidos à porta das casas antes da hora de ir dormir. O prazer de escrever, portanto, vem desde a infância, quando inventava ou reinventava histórias, muitas contadas pelos pais e outras tantas frutos da sua vasta fabulação, incluídas aí as lendas da terra distante ou retiradas das Mil e Uma Noites.

Salim Miguel cultua a palavra, pois em seu ethos a palavra sempre ocupou um lugar especial. Ela anuncia o milagre, a revelação, afinal o verbo desceu do céu. Unem-se mundos e, pela palavra, procura-se desvendar mistérios. Identifiquei na obra de Salim Miguel o estilo árabe, a estrutura da novelística iniciada com as Mil e Uma Noites, pois de um conto ou de um episódio pode surgir outro, a história dentro de outra história, a provocar o leitor, a estimulá-lo a decifrar o enigma, a conviver com o extraordinário. Salim leva para a escrita o seu olhar de cineasta.

Salim presta uma homenagem ao leitor, tornando-o cúmplice da sua narrativa. Sua obra é viva e vivifica. O leitor passa a ser envolvido pela beleza e pela delicadeza da narrativa, pelo poder insinuante das palavras e pela intensidade das emoções de seus personagens. A narrativa organiza o caos, organiza o discurso, sem perder a sua identidade, a sua personalidade, a sua consciência histórica, e vivifica a Shahrazad, aquela que, ao abrandar o coração do califa contando suas histórias, salva uma sociedade pela palavra!

Em árabe, temos muitas expressões que tocam, ao mesmo tempo, todos os nossos múltiplos sentidos e eu não poderia terminar este texto sem fazer referência a uma delas, a belíssima expressão de amorosidade, hospitalidade e gentileza: “Que teus olhos sejam atendidos”. Neste momento de tanta dor e sofrimento, tenho certeza de que se Monsenhor Alphonse e Salim Miguel aqui estivessem, desejariam que abrandássemos, com as nossas palavras e ações, o coração de Beirute, o coração do povo libanês!

Que teus olhos sejam atendidos!
A ti, Beirute, dedico todo o meu amor!

Ao retomar obra de libaneses, autora reconhece o poder das palavras | Foto: Acervo Pessoal

*Cristina Ayoub Riche é ouvidora da UFRJ e professora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos Suely Souza de Almeida (Nepp-DH). Foi professora da Faculdade de Letras, é advogada e mediadora de conflitos, tem mestrado e doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE/UFRJ).

Leia mais

Gostou do tema? A professora Cristina Riche deixa abaixo sugestões de leitura. Confira!

Alphonse Nagib Sabbagh
O Árabe sem Mestre (Editora Comercial Safady Ltda., São Paulo, 1959)
Dicionário Árabe – Português – Árabe (Editora UFRJ e Ao Livro Técnico, Rio de Janeiro, 1988)

Ana Claudia de Oliveira da Silva
“A produção narrativa de Salim Miguel e as diferentes projeções do autor em seu texto”

Antônio Cândido
“A literatura e a formação do homem”
“Direitos humanos e literatura”
“O direito à literatura”

Cristina Ayoub Riche
“Layla iluminada” – ensaio presente na coletânea Salim na Claridade, organizado por Flávio José Cardozo (Florianópolis: FCC Edições, 2001)

Nayla de Freige e Maria Saad
História Ilustrada do Líbano (São Paulo: Edde Editora Ltda, 2015)

Salim Miguel
Apontamentos sobre Meu Escrever (Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2000)
Nur na Escuridão (Rio de Janeiro: Topbooks, 2000)

Literatura é um direito e deve ser incentivada |Foto: Pexels (Pixabay)