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“Sem cultura não há sociedade, construção de pensamento, reflexão”

Nesta entrevista, Renato Carrera fala sobre o teatro e a cultura nacionais

Bacharel em Interpretação Teatral pela Universidade do Rio de Janeiro (UniRio), Renato Carrera participou de mais de 50 espetáculos ao longo dos seus 32 anos de carreira. É professor, dramaturgo, ator e diretor. Vencedor de vários prêmios de teatro, dentre os quais o Prêmio Questão de Crítica 2013 de Melhor Espetáculo por Vestido de Noiva,de Nelson Rodrigues. Em 2018, dirigiu o sucesso Malala, a menina que queria ir para a escola, indicado ao Guia Folha de SP  como Melhor Espetáculo Infantil do Ano, com temporadas em diversos lugares pelo Brasil e agora disponível gratuitamente em seu canal no YouTube. A peça já foi assistida por mais de 160.000 pessoas.

Nesta entrevista, Carrera mostra um pouco das suas percepções sobre o teatro brasileiro, a cultura em geral e o que esperar do setor para os próximos tempos.

Como você analisa a atual situação do teatro brasileiro?

O teatro brasileiro já vinha passando por um desmonte absurdo desde a mudança do Governo Federal. A escassez de políticas públicas e de um pensamento aliado à cultura e ao desenvolvimento artístico, tanto de mercado como de pesquisa, através de editais e de financiamento público ou privado, já estava caminhando para um desastre de proporções absurdas. Nós que tentávamos manter um desenvolvimento de linguagem e de pesquisa, ao mesmo tempo em que procurávamos nos sustentar com nosso trabalho por meio de espetáculos, estávamos sobrevivendo de bilheteria. 

Meu último espetáculo, Ielda – Comédia Trágica, tinha acabado de sair de uma temporada no Teatro Sesi Centro, às segundas e terças-feiras, com casa cheia, e, mesmo assim, terminamos a temporada sem conseguir pagar todas as contas. A verba fornecida pelo Sesi de R$ 13.000,00 não custeou a temporada nem o cachê. São oito atores em cena e mais de 25 profissionais trabalhando durante todo o ano de 2019 (de maio a dezembro) apenas com a ajuda de custo de R$ 500,00. Ensaiávamos quatro horas por dia, de segunda a sexta. Todos trabalhando como investidores e não como contratados. A bilheteria era fundamental para esse retorno aos artistas investidores.

Após a primeira temporada, reestreamos o espetáculo apenas às quartas-feiras, fizemos duas seções e tivemos que suspender devido à pandemia. Todos os custos e investimentos para essa segunda temporada, assim como a divulgação, montagem e desmontagem, operação de luz e som e os cachês de todos os artistas, foram suspensos. Nosso cenário está no teatro desde março e não temos previsão de retorno. Uma parte do elenco está sobrevivendo com apoios e cestas básicas.

Acredito que precisamos pensar juntos e trocar ideias entre os agentes e os fazedores de cultura e de teatro para que possamos pensar em estratégias de sobrevivência. Uma parte do elenco teve que retornar para suas cidades de origem, voltou a morar com pais ou está trabalhando em outra área, como vendedores ou professores de academia, por exemplo. 

Às vezes parece que a pandemia surgiu para acelerar o desmonte que já estava acontecendo.

Existe alguma movimentação do setor no sentido de tentar conter esse desmonte que o teatro e a cultura de uma forma geral já vinham sofrendo?

Vejo tudo muito escuro. Nós ficamos de mãos atadas. Precisamos pensar em nossa “sobrevivência” agora. Os artistas precisam de moradia e alimentação, coisas básicas para um ser humano. Os editais emergenciais são um auxílio para as famílias e para artistas que conseguem se virar e criar algo, correndo, em estado de emergência, dentro de sua área. Mas a arte não é assim. Uma criação pode demorar dois, três anos e os artistas precisam de tempo e de condições para criar. Como criar algo consistente num intervalo de tempo tão curto? Os prazos para criação são absurdos. Às vezes temos duas semanas e precisamos criar algo e apresentar em um mês o resultado. O edital do Governo Federal da Funarte exige o trabalho pronto e depois disso irão analisar se o “produto” tem condições de ganhar a verba ou não. Além de ser uma verba mínima para todo o trabalho, cujo valor é de R$ 2.500,00, ainda exigem que trabalhemos de graça para só então sermos analisados. O que seria isso? Um controle do material? Como vamos trabalhar de graça sem nenhuma garantia de retorno? Há uma inversão de valores e de pensamento muito perigosa e que faz parte de um desmonte geral.

Agora não é a hora de forçar o artista a trabalhar desesperadamente como uma máquina para que ele tenha algo de comer naquele mês. Agora é a hora de dar a base para que ele sobreviva.

Ações como o vale-refeição da Associação dos Produtores de Teatro (APTR) ou como a Lei Aldir Blanc, impulsionadas pelas deputadas Benedita da Silva e Jandira Fegalli, são os únicos suspiros em meio ao caos em que estamos sobrevivendo. Mesmo assim, precisamos ficar atentos para que essas ações, que agora dependem dos governos públicos, não ”morram na praia” e se tornem mais um reflexo e um exemplo de nossa desorganização. Precisamos ser fortes e ajudar uns aos outros.

Tenho acompanhado de longe as ações de entidades culturais no estado e no município do Rio de Janeiro e estou otimista. O que me preocupa são os artistas fora dos centros urbanos e de cidades do interior, onde eles ficam mais sozinhos.

A população e o brasileiro precisam estar mais conscientes e ao lado do artista. Somos a nossa e a sua história, o seu respiro, o som e o reflexo de seu pensamento. Somos a inspiração de um povo e de um país. Não podemos desaparecer!

Como você acredita que será a retomada do teatro quando a pandemia acabar?

Lenta. Ainda sinto dificuldades em visualizar uma plateia cheia, atores no palco em comunhão, proporcionando o encontro. Vejo que estamos em uma “incubadora”. O teatro precisou parar. Temos que esperar. Não temos como voltar. É preciso aceitar a pausa. Uma boa pausa é aquela que é feita com consciência, já diria uma grande atriz. Então, acredito que chegou a hora dela. Já, já, teremos a vacina. Vamos voltar a nos abraçar. Mas será um abraço diferente. Só saberemos lá na frente. Talvez a mudança ocorra na arquitetura dos espaços. As próximas construções de teatros terão que levar em conta o que passamos. Terão que ser repensadas. E se tivermos uma nova onda do vírus ou de outro vírus? Precisamos reentender o espaço cênico.

Para você, qual será o papel da cultura quando estivermos no chamado “novo normal”?

Espero, sinceramente, que o povo brasileiro repense a função da cultura e o quanto somos importantes para o desenvolvimento humano, para a saúde, para as relações. Sem cultura não há sociedade, não tem construção de pensamento, reflexão. Não avançaremos se não repensarmos. O que sinto é que está acontecendo uma nova valorização da arte, principalmente pelo público comum, fora do meio artístico. Meus trabalhos, que já tinham um foco mais voltado para o público comum, estão, cada vez mais, obtendo um retorno muito bom com esse mesmo público. Estou preparando um monólogo que, inicialmente, será apresentado em formato de filme, a partir de setembro, e tem estreia prevista, nos palcos, para o ano que vem. Meu novo texto escrito antes e durante a pandemia também estreia ano que vem. A versão em vídeo do último espetáculo infantil que dirigi ─ Malala, a menina que queria ir para a escola ─ já alcançou mais de 160.000 pessoas no YouTube. Acredito que a vontade de assistir ao vivo só aumenta.

A cultura voltará com força total. Estamos nos preparando para esse grande abraço e acredito que jamais seremos os mesmos. Sairemos fortes e conscientes da necessidade fundamental da arte para a nossa evolução.