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UFRJ se alia à sociedade civil no combate à COVID-19

No Complexo do Alemão, movimentos sociais realizam campanhas para apoiar população local e Universidade é parceira

A COVID-19 é realidade nas favelas do Rio de Janeiro. Na noite de quinta-feira (16/4), o jornal Voz das Comunidades, com informações da Prefeitura, confirmou 71 casos da doença – e nove mortes – em nove localidades. No Complexo do Alemão, que reúne 13 favelas e aproximadamente 180 mil pessoas, há um caso confirmado até o momento e a preocupação é grande. Em muitas casas, falta água, comida e condições de vida adequadas para uma mínima proteção contra o novo coronavírus. 

Pensando nisso, mais de 30 entidades da sociedade civil instituíram um “gabinete de crise” e passaram a atuar de forma estratégica, organizando campanhas de arrecadação de produtos básicos. Em um mês, o grupo distribuiu 290 cestas básicas (com alimentos e materiais de higiene), 388 galões de água e 50 caixas de sabão em barra. Uma conta mais ampla, contemplando o que foi arrecadado por igrejas, associações de moradores, organizações e outros parceiros, dá conta de quase mil cestas, 443 caixas de sabão e cerca de 24,7 mil litros de água (veja detalhes neste link).

Na terça-feira (14/4), o coletivo de comunicação Papo Reto registrou doação do “gabinete de crise” também para o Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, em Acari, onde faltava água e sabão. “É uma cadeia de solidariedade fazendo a prevenção dentro do território do Alemão e em outros lugares”, interpretou Lúcia Cabral, moradora da comunidade da Matinha e coordenadora da Organização Não Governamental Espaço Democrático de União, Convivência, Aprendizagem e Prevenção (Educap). 

Lúcia conversou com nossa reportagem na noite de segunda-feira (13/4). Segundo ela, mais de 150 famílias foram assistidas entre março e abril somente pela ONG que lidera, que fez campanha de arrecadação junto à Clínica da Família Zilda Arns. “Já tinha um quadro de desemprego dentro da favela que foi agravado pela COVID-19. Muita gente não tem mais acesso ao seu alimento, ao seu dinheiro, foi mandada embora, é diarista, é autônoma, trabalha nos ônibus vendendo balas, é camelô, trabalha com festa, com música. A gente conseguiu intervir com as campanhas, mas ainda existe uma grande demanda. E a tendência é aumentar”, avaliou.

Apesar da amplitude das ações do “gabinete de crise”, a sociedade civil sabe que não irá substituir o Estado e a necessidade de políticas públicas para a favela. E há, ainda, uma questão cotidiana que incomoda: a dificuldade de convencer os moradores da gravidade da doença. “Como a gente se protege se a população não vê o que está acontecendo e não acredita?”, indagou a ativista.

Conforme apontou, uma possível subnotificação dos casos tem contribuído com essa situação. Se oficialmente há um caso de COVID-19 confirmado, para Lúcia esse número é subestimado pois, muitas vezes, os registros são feitos como Ramos, Bonsucesso, Engenho da Rainha ou Penha, bairros que contornam as favelas do Alemão. “Neste momento, a mídia podia ajudar mais e o próprio setor de saúde poderia, na hora de fazer a notificação, registrar como Complexo do Alemão. A população que está na favela não acredita, mas, para mim, já começou o efeito cascata na Nova Brasília”, denunciou.


Um dos panfletos educativos. Imagem: PET Interprofissionalidade

Participação da UFRJ

Diante dos desafios, o “gabinete de crise” também tem se dedicado a dialogar com a população. Além da pujante mídia local, composta por diversos veículos e coletivos de comunicação, o grupo tem produzido material audiovisual e gráfico para distribuir pelas ruas e nas redes sociais, com informações básicas sobre prevenção e higiene. A UFRJ entra nessa história a partir desse ponto. Além de se engajar nas ações empreendidas pelo Educap desde o início da pandemia, um grupo de professores e estudantes vem contribuindo com a elaboração de produtos informativos e educativos. 

“O que fazer para proteger sua família e sua morada? Criamos um material sobre isso, adaptando para a realidade de pessoas que têm água em casa e que não têm, que têm acesso à internet ou não, que sabem ler e que não sabem. Também estamos preparando orientações específicas para entregadores e motoboys”, apresentou Mirella Giongo, professora da Faculdade de Odontologia (FO), que conversou conosco no dia 26/3. “Assim que foi decretado isolamento social, passamos a trabalhar online em busca de apoio para as famílias vulneráveis do Alemão”, relembrou.

Uma das atuações da Universidade no Complexo do Alemão é por meio do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde). Criado nacionalmente em 2010, o PET é parte de uma política de formação e qualificação profissional no contexto da saúde pública. Na UFRJ, a iniciativa teve início a partir do edital 2019/2020, é conhecida como PET Interprofissionalidade e envolve atividades de ensino, pesquisa e extensão dos cursos de Enfermagem, Medicina, Odontologia, Psicologia e Saúde Coletiva. Mirella é parte dessa equipe, composta por 10 docentes, 30 estudantes de graduação e 20 profissionais de saúde. “Esse projeto, interdisciplinar e interprofissional, tem como objetivo estimular a formação de recursos humanos para um trabalho de equipe dentro da atenção primária em saúde, a partir da realidade das pessoas, nas Clínicas da Família”, explicou. 

Por meio do PET Interprofissionalidade, a UFRJ participa da rotina de três Clínicas da Família localizadas na zona norte do Rio de Janeiro: Zilda Arns, aqui já mencionada, Felipe Cardoso, na Penha, e Wilma Costa, na Ilha do Governador. “A Clínica nos permite vivenciar algo muito novo em termos de integração com a comunidade”, relatou a professora, que está na Zilda Arns desde o ano passado.

Trabalhar no âmbito da atenção primária é estar inserido na Estratégia de Saúde da Família (ESF) e, assim, encarar o direito à saúde de um ponto de vista integral e complexo, com foco na prevenção de doenças. Dessa perspectiva, um ser humano saudável tem sua dignidade resguardada no que diz respeito à alimentação, ao trabalho e à renda, à sociabilidade, ao lazer etc. 


Vínculos criados antes da pandemia. Foto: Acervo de Mirella Giongo

Essa lógica permitiu que o PET Interprofissionalidade participasse, em 2019, de um evento chamado Ocupa Saúde, aproximando-se, assim, dos movimentos sociais. “Esse encontro foi muito potente e desaguou num cotidiano em que trabalhamos juntos permanentemente. Hoje não somos só a UFRJ, somos um grupo que envolve trabalhadores da saúde, residentes de Saúde da Família, internos da Medicina, docentes e estagiários do PET, ONGs e lideranças comunitárias desse grande território”, listou Mirella Giongo. 

Como os vínculos foram formados antes da pandemia, tem sido possível dar continuidade ao trabalho por telefone ou pela internet. “Vamos percebendo as necessidades que os movimentos sociais estão sinalizando e dando nossa contribuição”, indicou Mirella. Para ela, nessa relação, quem sai ganhando é a Universidade. “A UFRJ cumpre na excelência o seu papel quando produz conhecimento e desenvolve ações e qualificação de recursos humanos dentro desses territórios e com parceiros locais. Quando nos aproximamos da sociedade, é como se descortinássemos o mundo.” Lúcia Cabral, acostumada a receber estudantes na Educap e uma das responsáveis por esse entrelaçamento, completou: “Sou UFRJ há muito tempo”.

Estado cada vez mais distante

Nessa relação bem sucedida, porém de muita luta, é impossível esquecer a vulnerabilidade social e as ausências do Estado. A Clínica da Família Zilda Arns, por exemplo, composta por 15 equipes multiprofissionais, é responsável por atender parte do Alemão que corresponde à Área de Planejamento Municipal 3.1. Cada equipe conta com um médico, um enfermeiro, um técnico em enfermagem e cinco agentes comunitários. Esses, peças-chave da ESF, são moradores do lugar e têm como tarefa acompanhar cerca de 300 a 400 pessoas. 

Em 2019, o Município demitiu parte de seus terceirizados e isso fez com que cada equipe da Zilda Arns perdesse um agente de saúde. Para completar, no fim de janeiro deste ano, o Governo Federal anunciou desinvestimento no Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf), abolindo a criação de novas equipes multissetoriais (compostas também por psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas, farmacêuticos etc.) e desobrigando os municípios a investir no modelo proposto pela ESF. 

Para piorar, além da falta de recursos humanos, a Clínica tem lidado com a escassez de insumos. “Não tem um sabão para lavar, um álcool em gel, não tem uma máscara para o profissional trabalhar”, lamentou a coordenadora da ONG Educap. 

Quer contribuir com essa e outras realidades? Clique aqui e veja a lista de campanhas espalhadas pelas favelas do Rio de Janeiro.